Foi em 25 de Março de 1995, há 30 anos, que o papa João Paulo II proclamou a encíclica Evangelium Vitae sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana. Este documento pontifício, condenando o aborto e a eutanásia, vinha enquadrado pela Veritatis Splendor e pela Fides et Ratio, constituindo uma tríade pedagógica para os católicos, para os cristãos e para todos os homens e mulheres de boa vontade. Tinha já um antecedente importante na Humanae Vitae, de Paulo VI, de 1967, em cuja redacção Karol Wojtyla, então bispo, participara.
O documento respondia a uma ofensiva dos centros do poder mundial contra a sociedade cristã. Nos Estados Unidos era o tempo da primeira Administração Clinton que, apesar da linguagem soft era empenhadamente pró-aborto. Assim, a legislação era permissiva e os militantes democratas, através de lobbies como o National Abortion and Reproductive Rights Action League (NARRAL), encarregaram-se de promover uma política de alargamento do aborto.
Logo em 1993, Pamela Moraldo, presidente da Planned Parenthood Federation of America, lançou uma campanha para incluir o aborto num pacote de medidas de saúde gratuitas para a população americana. Além disso, Bill Clinton nomeou para o Supremo Tribunal juízes apoiantesda liberalização, como Ruth Ginsburg, que em Junho de 1993 substituiu o juiz pró-vida Byron White. Ginsburg defendia que pôr limites ao aborto era uma forma inconstitucional de descriminação sexual. Em Maio de 1994 foi escolhido Stephen Bryer, outro defensor do alargamento dos “abortion rights”.
Além destas medidas domésticas, a Administração Clinton promoveu o aborto como método de controlo da população nos países em desenvolvimento – na América Latina e em África – e acabou com disposições das Administrações republicanas a favor da natalidade, como a norma que protegia aas chinesas que vinham para a América para escapar às medidas abortivas impostas pelos comunistas para controlo da população.
A ONU seguia uma política paralela, com medidas anti-família. Esta política da América progressista, nos anos posteriores ao desaparecimento da União Soviética e em plena febre neo-conservadora de exportar o modelo político-económico americano, era indissociável do hedonismo das elites “liberais”, na sua maioria activistas da “cultura da morte”; uma cultura que João Paulo II, denunciava nestes termos:
“A morte luta contra a vida: uma ‘cultura da morte’ procura impor-se ao nosso desejo de viver, e de viver plenamente. Há os que rejeitam a luz da vida, preferindo ‘as obras infrutíferas das trevas’ (Ef 5:11). A sua colheita é a injustiça, a discriminação, a exploração, o engano, a violência. Em todos os tempos, uma medida do seu aparente sucesso é a morte dos Inocentes. No nosso século, como em nenhuma outra época da História, a ‘cultura da morte’ assumiu uma forma social e institucional de legalidade para justificar os mais horríveis crimes contra a humanidade: genocídio, ‘soluções finais’, ‘limpezas étnicas’ e a ceifa maciça de vidas de seres humanos mesmo antes de nascerem ou antes de atingirem o ponto natural da morte”.
Um sacerdote muito especial
Esta passagem da encíclica Dominum et vivificantem (O Senhor é o Doador da Vida), de 1986, era clara na condenação do aborto e da eutanásia, equiparados aos grandes crimes contra a Humanidade do século XX. Nascido na Polónia em 1920, João Paulo II vivera no coração físico e temporal das atrocidades praticadas pelo hitlerismo e pelo comunismo. De resto, a vocação sacerdotal chegara-lhe durante a guerra, na Cracóvia ocupada pelos alemães. Depois da guerra, já sacerdote, fora estudar teologia para Roma, concluindo ali, em 1948, o doutoramento com a tese “A Doutrina da Fé segundo São João da Cruz”. A essa seguira-se uma outra tese, em Filosofia, relacionando a ética católica com a fenomenologia de Max Scheller.
Era um sacerdote muito especial que além de ler, estudar, escrever e exercer o seu ministério sacerdotal, se relacionava com a Vida e a Criação praticando desportos pouco usuais para um “homem de Deus”, como o esqui, a canoagem e o caiaque.
Em Julho de 1958, Pio XII fê-lo bispo auxiliar de Cracóvia. E foi como bispo que participou no Concílio Vaticano II, colaborando em documentos basilares, como a Dignitatis Humanae e a Gaudium et Spes.
Paulo VI fez Karol Wojtyla arcebispo de Cracóvia em 1964 e cardeal em Junho de 1967. O novo cardeal, que sempre tivera uma grande devoção mariana, empenhou-se na edificação e consagração da Igreja de Nossa Senhora Rainha da Polónia, em Nova Huta. Em 16 de Outubro de 1978, depois da morte de Paulo VI e do curtíssimo pontificado de João Paulo I, o cardeal Wojtyla foi eleito Papa. Inaugurava assim o terceiro mais longo pontificado da História da Igreja, um pontificado que duraria mais de 26 anos (o pontificado de S. Pedro durara 37 anos e o de Pio IX, 31).
João Paulo II, enquanto Papa, concentrou primeiro os seus esforços na libertação da sua pátria, da Europa Oriental e da própria Rússia do comunismo. O exemplo da Polónia foi nisso decisivo: ao recorrerem à ditadura militar de Jaruzelski para enfrentar e reprimir o Solidariedade, os comunistas distanciaram-se, na forma, da repressão estalinista, ou mesmo da repressão pós-estalinista da revolta de Budapeste na Hungria, revelando-se sensíveis à opinião externa. Verdade que Reagan estava na Casa Branca e Thatcher no número 10 de Downing Street, o que permitia uma coordenação de forças mais eficaz – e que no Vaticano estava Wojtyla, outro elemento decisivo.
Quando o comunismo acabou, com a dissolução da União Soviética e a transformação da China num nacional autoritarismo capitalista, João Paulo II concentrou-se na luta pela Vida e pela dignidade da vida humana. O mundo dominado pela luta entre o “Mundo Livre” e o Comunismo pertencia à História; agora quem governava o mundo era uma elite hedonista, defensora de um globalismo ou de um mundialismo comandados pelos “mercados”; um mundo supermercado, em que a ética, a moral e a política, se subordinavam à economia.
No Admirável “Mundo Livre”
Era um “novo mundo”, uma reedição do Brave New World de “adoráveis criaturas” que surpreendera Miranda na utopia shakespeariana.
Relendo, há dias, a distopia de Huxley, não pude deixar de pensar que se Zamiatine, no Nós, e Orwell, no 1984, retratam a distopia comunista, Huxley prevê o mundo do globalismo pós-Guerra Fria, o nosso mundo, com elites semelhantes aos arrogantes Alfas de Huxley e uma população de comuns devidamente manipulada e intoxicada pelo sistema de domínio instituído.
João Paulo II estava atento à cultura hedonista e cosmopolita que se esboçava no seu tempo e denunciou-a sem receio nem descanso na Evangelium Vitae, referindo “a rede de cumplicidade” que se expandia “para incluir instituições internacionais, fundações e associações que sistematicamente [faziam] campanhas para a legalização e alargamento do aborto no mundo”. Aborto que o Papa qualificava como um “assassinato”, “o mais sério e perigoso crime”.
Consequentemente, o Papa empenhou-se em combater a ideia de transformar o “direito ao aborto” em direito fundamental, a incluir nos direitos humanos. A ideia, levantada no Cairo em 1994, na Conferência sobre População e Desenvolvimento, e também na Conferência das Mulheres, em Pequim, em 1995, além de imoral e desumana, contrariava os progressos científicos. Foi graças a João Paulo II e à oposição da Santa Sé, com o apoio de muitos países, que a elevação do aborto como a fundamental não chegou, então, a fazer-se.
É uma luta que continua. João Paulo II, intransigente na defesa da vida, recorreu aos princípios do Direito Natural e dos direitos naturais tomistas para combater as poderosas correntes que, em nome desses mesmos direitos, mas de forma corrompida, procuravam e procuram instituir o aborto como direito universal (o presidente Macron, arvorado agora em campeão da “nova Europa”, já conseguiu inscrevê-lo na Constituição da França, como se de um progresso se tratasse).
João Paulo II morreu há vinte anos, em 2 de Abril de 2005, e foi canonizado há onze, em 27 de Abril de 2014. Dele, disse o Papa Francisco: “São João Paulo II, apaixonado pela Vida e fascinado pelo mistério de Deus, do Mundo e do Homem, foi um dom extraordinário do Senhor à Igreja”.
À Igreja, ao mundo e a todos nós. Saibamos merecê-lo.