Na tragicomédia que foi a última semana da política portuguesa já se explorou muito a parte da comédia. A esquerda e o centro-direita regozijaram-se com graças como o Chega ter muita bagagem, de passar de ter muitos trolls para ser um partido com excesso de trolleys e de apesar de Ventura apoiar Trump, Miguel Arruda preferir ficar Kamala (o que até deu flyer digital da IL). Já a direita diverte-se com o facto de o Bloco de Esquerda estar a fazer jornadas parlamentares sobre direitos laborais, num caso onde a piada se faz sozinha. Arrumada que está num parágrafo toda a comicidade inerente às situações inusitadas, vamos então à parte trágica.
Começando pelo Chega, André Ventura não tem culpa do que o seu deputado alegadamente fez. Mas tem um legado, que é da sua responsabilidade, de chamar ladrão a tudo e a todos por bem menos. Ainda no último debate do Orçamento do Estado na generalidade disse que o Governo de Montenegro era “tão ladrão” como o de Costa. Ainda durante o Governo PS, no regresso dos quinzenais em outubro de 2023, falou de uma “terceira mão” do Executivo de Costa que estava “sempre a gamar os portugueses todos dias”. Isto para não falar que também lhe podem ser atribuídas culpas no, por vezes, desastroso recrutamento de quadros do partido, como provam os casos de funcionários, autarcas e até deputados já condenados pela justiça.
Miguel Arruda traz a Ventura problemas graves de gestão da comunicação. Perante um caso com indícios tão fortes, a ideia de que o Chega é um partido diferente — e que no centrão é que estão os corruptos e os ladrões — fica mais difícil de vender para fora. A André Ventura passa a ser muito difícil fazer o gesto do “gamanço” e rodar caprichosamente os cinco dedos em pleno hemiciclo depois de um deputado do Chega ter sido acusado (e com fortes indícios) de roubar malas no aeroporto. Mesmo passando a não-inscrito, o facto de Miguel Arruda continuar sentado ao lado da bancada de origem não é um elefante na sala, é um mamute a ferir com as suas presas de marfim os 49 deputados do Chega.
A continuidade de Miguel Arruda é também um desafio de liderança para André Ventura. Há a ideia (que parece corresponder à realidade) que muitos dos deputados e dirigentes do partido, antes de cheguistas são venturistas. Apesar disso, o presidente do Chega no seu magistério de liderança não conseguiu convencer um dos seus maiores fãs e subordinado (Miguel Arruda) a abdicar do lugar perante acusações tão graves — o que mostra que, no fim do dia, ficar com o lugar conta mais do que proteger o partido. Ou como se diria no dicionário de português-venturês: “Uma vergonha”. Ou melhor: “Ficou agarrado ao tacho”.
Perante tudo isto, em vez de uma terceira mão, Ventura terá na bancada um corpo presente, o quinquagésimo deputado, que formalmente já não é do partido, mas, para o eleitorado, e para o povo, será sempre “o tipo das malas do Chega”. O contexto é particularmente mau numa altura em que as sondagens mostram que está a perder eleitorado para a AD. Também pode ser particularmente preocupante para Ventura por faltar menos de um ano para uma campanha presidencial em que vai enfrentar um candidato fora dos partidos e do sistema (o almirante Gouveia e Melo).
Mas uma tragicomédia nunca vem só. Se o partido que ataca os ladrões foi acusado de ter um flagrante gatuno nas suas fileiras, a força política que ataca os patrões fez um despedimento digno de tornar os neoliberais lobos de Wall Street em adoráveis caniches.
Já era mau o despedimento coletivo que a direção quis na altura abafar, como cantaria José Afonso, no céu cinzento sob o astro mudo e batendo as asas pela noite calada. Mas o Bloco de Esquerda — que tem como uma das suas bandeiras a defesa dos direitos das mulheres, incluindo os laborais — deu um passo em frente na crueldade e descartou recém-mães, ainda lactantes, como se isso fosse pouco mais do que um detalhe. Mesmo ao estilo de Donald Trump, que na célebre série The Apprentice, sem dó nem piedade, afastava os colaboradores com a simples frase: “You’re fired“. Trump tinha uma vantagem: fazia-o porque era a regra do reality show que dirigia e fazia-o cara a cara com os despedidos. O Bloco fê-lo, pelo menos num dos casos, por telefone.
O Bloco poderia ter a atenuante de ter mantido contratos-fantasma com as funcionárias recém-mães durante mais oito meses para as favorecer. Mas até isso é errado, desastroso e uma agravante. Desde logo, isso fez com que o partido não pagasse indemnizações e que as trabalhadoras entrassem mais tarde no sistema de proteção social. Isso permitiu terem subsídio de desemprego até mais tarde o que também era uma forma de o utilizar abusivamente: pela lei, deviam começar a receber assim que perdem o emprego e não oito meses depois. A melhor forma de defender as prestações sociais (e dos que dizem que servem para alimentar a subsidiodependência) é seguir as regras e não contorná-las.
Mas as agravantes do Bloco de Esquerda não ficam por aqui. O mesmo partido que ia para as portas das empresas exigir que os patrões arranjassem forma de resolver despedimentos coletivos — e que querer proibir as empresas com lucros de despedir –, não teve problemas em mandar para a rua metade dos trabalhadores sem proteger os mais vulneráveis. O Bloco deu prejuízo no ano do despedimento coletivo (de 303 mil euros), mas teve logo um saldo positivo de 35 mil euros logo no ano seguinte, além de que tinha 717 mil euros em caixa. O mínimo, para um partido defensor dos direitos dos trabalhadores e das mulheres, seria fazer um esforço para segurar as trabalhadoras mais frágeis — mesmo sacrificando o lucro, que existiu, no ano seguinte. Não o fez.
Pior: nesse mesmo ano de 2023, o Bloco de Esquerda arranjou financiamento para contratar a ex-líder Catarina Martins, que teria uma situação de uma aparente menor fragilidade. Não houve recursos financeiros para segurar as recém-mães, mas houve para dar uma avença a Catarina Martins (que recebia do programa Linhas Vermelhas da SIC e esteve na Assembleia da República de maio a setembro de 2024 já depois de deixar de ser líder). E logo Catarina Martins que, ainda por cima, era a líder no momento do despedimento coletivo.
A tragédia do Bloco de Esquerda é maior do que outras polémicas do passado. Quando foi Ricardo Robles a cometer o erro capital, ou capitalista, de ter uma grande propriedade que queria transformar em alojamento local, os seus camaradas de partido não tiveram pejo em afastar e marginalizar o até então querido “Xeca” como se estivesse lepra. Luís Monteiro, com as acusações de violência a uma ex-namorada, foi igualmente afastado, não quando a direção soube, mas quando foi público — o que demonstra bem a hipocrisia caviar. Mas agora não dá para seguir o modelo de responsabilização individual porque a culpa foi de uma entidade coletiva, o partido. Esfrega as mãos o Livre de Rui Tavares, pelo menos até que as pessoas se recordem de como tudo se passou com Joacine Katar Moreira ou de como a hiperdemocracia de primárias abertas quase se transformava numa exclusão anti-democrata de Francisco Paupério. Não fosse trágico, tudo isto era cómico.