Há poucos dias, participei num encontro onde alguém partilhou a seguinte história. No final de Dezembro, quando o Papa Francisco visitou uma prisão, em Itália, para abrir uma porta santa por ocasião do Jubileu 2025, à saída, passando pela secção do estabelecimento prisional onde os reclusos não podem sair das celas, estes tentaram aproximar-se o mais possível das grades e, enquanto procuravam ver o Papa, gritavam: “Ti amo, Francesco”.
Nos últimos tempos, sobre a Igreja, tem caído acusações de mundanismo. Há quem diga que ela se aburguesou, que deixou de ser contracorrente. No entanto, hoje, não há nada mais contracorrente do que passar por uma prisão e ouvir um recluso dizer-nos: “Amo-te”. Do mesmo modo que, no meio de tanta política de cancelamento, não há nada mais contracultura, do que convidar humoristas para o Vaticano e lhes elogiar a defesa da liberdade de expressão. Talvez, como em tudo, seja necessário aprender a ver o copo meio cheio.
Um dos exemplos disso são os vários pronunciamentos que o Papa tem feito, em especial sobre a guerra e paz. É verdade que nem todos concordamos com as soluções para os conflitos, que nem todos temos as mesmas posições, que nem todos olhamos para o futuro do mesmo modo, mas Francisco tem alertado para o facto de que nenhuma solução ou resposta, para ser honesta e responsável, pode partir de outro lado senão do escândalo e do desassossego diante do horror do sofrimento humano.
Podemos ler Tucídides, Políbio ou Heródoto, mas a geopolítica também tem que partir daquelas perguntas que Bento XVI enunciou quando, em 2006, visitou Auschwitz: “Onde estava Deus naqueles dias? Porque é que Ele se silenciou? Como pode tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal?”. Na ocasião, Ratzinger esclareceu algo tantas vezes repetido pelo Papa Francisco: “A violência não cria paz, mas suscita apenas outra violência, uma espiral de destruição”. O Papa alemão disse, aliás, que, se Deus é razão, essa razão não é uma “matemática neutral”, mas a razão “do reconhecimento da força da reconciliação e da paz”, que deve prevalecer “sobre as ameaças circunstantes da irracionalidade ou da falsa razão”. Decerto, para muitos, hoje seria um herege.
Pelas limitações da linguagem e da existência, o muito que nos define deriva daqueles que escolhemos como nossos interlocutores. E embora as definições possam ser redutoras, é possível dizer que João Paulo II teve como interlocutores os grandes líderes como Reagan, Thatcher ou Walesa; Bento XVI a academia, com enormes discursos e Ratisbona, Freiburg e La Sapienza; e o Papa Francisco, os marginalizados. E essa opção, hoje tantas vezes censurada, tem um contexto e foi profética.
Em 2013, quando foi eleito, Francisco conviveu, no cenário global, com figuras como Obama, Merkel, Cameron, Hollande, Shinzō Abe ou Singh. Olhando para trás, Francisco talvez tenha sido dos primeiros a entender o desfasamento entre as elites e essa figura mítica do comentariado que é o “cidadão comum”, e talvez tenha sido, também, dos primeiros a perceber as verdadeiras consequências da fadiga, da revolta e do anonimato que atingem grupos sociais cada vez maiores. A verdade é que enchemos os nossos discursos com a matriz cristã do ocidente, mas esquecemos que ela é mais clara no gesto de lavar os pés, do que nos compêndios e nas catedrais.
Fala-se muito da bolha mediática. Rimos dela quando insiste que a vitória de Trump é fruto do voto de uns quaisquer maluquinhos, ou se recusa a questionar a fundamentação das políticas identitárias. Mas há um outro tipo de bolha, que também não entende, ou não quer entender. É a bolha que insiste na mitológica tradição de uma ritualidade baseada no latim e na superioridade ontológica de uns, face à inferioridade ontológica de outros. É a bolha que só vê a Igreja sentada em banquetes e receções oficiais, repleta de boas companhias e bons princípios, que critica o individualismo do tempo presente, mas quer ressuscitar o individualismo de Trento. É a bolha para quem tudo é um juízo entre preto e branco, e a misericórdia é uma cedência da justiça. Para lá dela, o cristão comum está pouco preocupado com estes assuntos. Sintoniza e compreende esta espécie de avó, que pode não ter sempre a resposta debaixo da língua, mas a quem se pode dizer “amo-te” sem olhar a mais nada.