Quando tinha 26 anos, acabadinha de ser eleita deputada pouco tempo depois de ter completado uma licenciatura em “Ciência Política e Relações Internacionais”, e quando começava a ser uma pessoa conhecida, Rita Rato disse numa entrevista que não tinha opinião sobre o gulag soviético, “em concreto”, porque nunca estudara ou lera alguma coisa sobre o assunto. Isso não obstou a que, alguns anos depois, fosse nomeada directora de um museu lisboeta onde se recordam os anos da ditadura salazarista, cargo que ainda ocupa. Não se sabe se entretanto teve curiosidade suficiente para aprender mais alguma coisa sobre a ditadura soviética, apenas se sabe aquilo que é evidente: na política só nos interessamos por tomar conhecimento do que encaixa nos nossos preconceitos, se preferirem, nas nossas narrativas. O resto preferimos suprimir.
Lembrei-me deste episódio a propósito daquilo a que já chamaram “o maior crime em tempos de paz – e o maior encobrimento – da história britânica”, um escândalo de dar voltas ao estômago que reemergiu por estes últimos dias no Reino Unido. Na verdade eu mal me lembrava deste caso que passará à história como o dos “grooming gangs” pois não me apercebera da sua dimensão – eles vêm referidos num livro que li há uns anos e a que regressei agora, “A Estranha Morte da Europa”, de Douglas Murray. Em poucas palavras o que se passou foi que durante muitos anos, pelo menos desde 1997, que se sabe da existência de grupos de “aliciamento” (o significado de “grooming”) de raparigas ou mesmo adolescentes brancas das classes baixas, muitas de famílias disfuncionais e a viverem em lares, por grupos constituídos sobretudo por britânicos de origem paquistanesa e religião islâmica. A etnicidade dos gangs não levanta hoje qualquer tipo de dúvidas, nem ao sempre cuidadoso New York Times, como não suscitou a quem realizou os inquéritos oficiais que já houve sobre estas práticas, como recordou a BBC.
Para ser mais exacto, não se tratou de “grupos de aliciamento”, eram mesmo gangs de violadores que actuaram muitos anos em localidades tão diferentes como Rotherham (uma cidade de 100 mil habitantes no centro de Inglaterra) ou Oxford. Os relatos sobre o que esses gangs faziam às suas vítimas é difícil de descrever, é preciso ter estômago para conhecer os detalhes e por isso não os vou referir. Mas há vários aspectos que são hoje indiscutíveis:
- a dimensão dos crimes é avassaladora, pois estamos a falar de milhares de vítimas (só em Rotherham terão sido 1400 entre 1997 e 2013);
- a forma como actuaram as autoridades de muitas das regiões afectadas, o que inclui o poder político local, as polícias e os tribunais, foi na melhor das hipóteses negligente, na pior deliberadamente “distraída” ou mesmo preocupado com o encobrimento;
- as tentativas para abafar alguns destes casos, sobretudo para abafar a ligação entre as violações em grupo e a origem étnica e religiosa dos criminosos foi um padrão seguido em quase todo o lado e que poucos desafiaram;
- há evidência que a comunicação social também foi cúmplice do encobrimento, tendo havido reportagens que não foram publicados e documentários cuja difusão foi adiada, pelo menos.
A pergunta perturbadora é a relativa a saber porque é que tudo isto se passou assim, pois falamos de um longo período de tempo e de um assustador padrão de comportamentos.
A primeira resposta é má, mas não é nova num país tão marcado por diferenças de classe como o Reino Unido: as vítimas eram raparigas muito novas e de classe baixa, pertenciam àquilo a que alguns chegaram a chamar, de forma inumana, “white trash”, “lixo branco”, numa referência à sua cor de pele. Houve casos em que as vítimas foram tratadas quase como culpadas por terem sido agredidas e violadas.
A segunda resposta é muito pior, muito mais perturbante: a falta de atenção a estes crimes, a relativa benevolência com que muitos criminosos foram tratados, deriva do padrão étnico-religioso dos agressores. Há relatórios de polícia em que se sugere que se abafem as notícias para evitar acusações de racismo e de islamofobia, ou então por receio de eventuais tumultos interétnicos ou de promover o populismo.
Ou seja: as elites britânicas – e falo de elites pois este tema chegou por mais de uma vez ao governo, ao parlamento e até à liderança das oposições, tal como falo de elites pois lá, tal como cá, também existe a elite político-mediática da bolha de Londres, uma elite que no limite decide o que é ou não importante noticiar e debater. Foram essas elites britânicas que decidiram enterrar este escândalo, esconder o mais possível estes crimes, pois eles desafiavam a narrativa, e a narrativa no Reino Unido é, há décadas, que o multiculturalismo é um sucesso e que só temos de nos preocupar com a boa integração dos imigrantes, não olhar demasiado para o que eles andam a fazer, mesmo quando há imãs a pregar a jihad.
As elites britânicas têm nesse aspecto sido como as nossas – e por isso é que me lembrei da Rita Rato que, na sua ingenuidade juvenil, acabou por confessar que nem sabia muito bem o que tinha sido o gulag, pelo menos não o suficiente para condenar esse sistema soviético de campos de trabalho. Houve um tempo em que a maioria dos intelectuais de países como a França ou a Itália eram como a Rita Rato: também não queriam ver ou ouvir, também não queriam tomar conhecimento das realidades que desafiavam a sua cosmovisão (hoje chamamos a estas coisas “a sua narrativa”).
Essas mesmas elites também estariam bem com os que promoveram a manifestação “não nos encostem à parede” deste fim-de-semana. A sua narrativa é que temos uma polícia estruturalmente racista (também houve em tempos acusações dessas à polícia britânica e ela acobardou-se), a sua narrativa é que todas as regiões das nossas cidades são igualmente seguras, razão porque foram para a Av. de Roma em Lisboa simular que estavam encostados à parede como na Rua do Benformoso, a sua narrativa é que de forma alguma se pode associar insegurança a imigração – isso é mesmo o pecado dos pecados.
Numa primeira fase não foram poucos os que acharam que aquela operação da polícia não tinha precedentes, que nunca ninguém fora encostado a uma parede para ser revistado. Creio que hoje todos saberão que isso é rotineiro nas operações policiais, que acontece todos os dias e que faz parte dos procedimentos regulamentares das forças de segurança, no caso português até bastante menos intrusivos e agressivos do que os praticados noutros países.
Nessa primeira fase também trataram de fazer circular a narrativa de que era tudo por causa da política e da existência do Chega e também de uma viragem do governo para a extrema-direita, uma narrativa que depressa se confrontou com o conhecimento de terem existido naquela mesma zona várias operações semelhantes e até bem mais musculadas em períodos de governação socialista.
Por fim, já em cima da manifestação, chegámos ao argumento final: talvez até seja verdade que há mais operações como aquela, mas ali, naquela rua, naquela praça, não podem acontecer intervenções policiais daquela dimensão. Porquê?, perguntarão os leitores. Porque todos sabemos que aquela rua está sempre cheia de imigrantes, sobretudo de imigrantes indostânicos, e a simples realização de operações policiais pode criar a percepção de que há uma relação entre imigração e insegurança.
Ou seja, tal como às autoridades de Rotherham, o que preocupa quem assim argumenta não é a realidade dos factos, é poder criar-se, ou reforçar-se, uma “percepção” concorrente às suas próprias percepções. Estamos a um passo de defender que, como sucedeu no Reino Unido, se trate de esconder crimes reais para que a polícia não seja acusada de racismo ou para que partidos mais extremistas prosperem (também isso foi argumentado no Reino Unido, apesar da insignificância que então tinham os partidos extremistas).
O problema com estas “narrativas” é que muitas vezes elas implodem de um momento para o outro e isso faz virar o feitiço contra o feiticeiro. É precisamente o que se está a passar no Reino Unido agora que este escândalo está por fim a ser abertamente discutido, e foi também o que se passou neste fim-de-semana em Lisboa.
No sábado lá tivemos as manifestações da praxe, a promovida pela extrema-esquerda e por alas cada vez mais radicais do Partido Socialista, que lá desceu a Almirante Reis sem uma mobilização que impressionasse por aí além, e a promovida pelo Chega, mais diminuta em participantes mas um novo sinal de que voltou a haver em Portugal um partido à direita que não tem receio de vir para a rua, algo que praticamente não sucedia desde os dias do PREC.
A história ficaria por aqui, porventura com a nota de rodapé, certeira, de Luís Montenegro, de que tinham sido dois extremismos a desfilar, se ontem naquela rua onde supostamente nunca sucede nada, na mais do que pacífica Rua do Benformoso, não tivesse acontecido uma rixa de que resultaram sete feridos, três a necessitarem de tratamento hospitalar. Ainda há poucos dias o comentariado televisivo garantia que a rusga tinha sido um insucesso pois só fora apreendida uma arma branca apesar de tanta gente revistada – agora cai em cima destas almas sabedoras uma rixa com paus, ferros e até, vejam lá, uma arma branca, e ainda uma tentativa de evitar que jornalistas dessem conta da ocorrência (um dos câmaras da CNN foi quase agredido).
Não preciso de explicar quem sai vencedor neste taco a taco de argumentos. Não preciso sequer de lembrar a sondagem onde se revela que, afinal, a maioria dos portugueses, numa proporção superior a dois para um, até concorda com a operação policial na zona do Martim Moniz – apenas gostava de voltar a sublinhar uma evidência: a esquerda que temos, cada vez mais radicalizada, é mesmo a melhor aliada dos radicalismos de sinal oposto.
Quanto à forma como chegámos aqui apetecia-me regressar a “A Estranha Morte da Europa”, um livro que tem como subtítulo “Imigração, Identidade, Religião”, mas como o texto já vai longo, deixo-vos apenas uma passagem do posfácio, escrito em Janeiro de 2018, um ano depois do lançamento:
“Ainda há pessoas que tentam fingir que tudo aquilo por que estamos a passar – e tudo o que iremos passar nos anos à nossa frente – é normal. Ou que não vai continuar. (…) Há um esforço em curso para fazer com que os eleitorados europeus não acreditem na evidência das suas próprias vidas. (…) Este fingimento não faz sentido – não faz sentido fingir que tudo o que se está a passar não constitui a mudança mais significativa que é possível numa cultura”.
Continuamos a assistir aos mesmos fingimentos, agora à nossa porta, e, sete anos passados, sabemos como o panorama político na Europa mudou e continua a mudar.
Os moderados, se não quiserem ficar cada vez mais prisioneiros dos extremistas – se não quiserem que os encostem à parede – têm de nunca se esquecer que pode-se enganar algumas pessoas o tempo todo, pode-se enganar todas as pessoas algum tempo, mas não se pode enganar toda a gente o tempo todo.
Por isso há temas que têm de ser enfrentados, não camuflados ou travestidos de “narrativas” cheias de um falso “bom coração”.
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