Ao autor, o grande Fernão Mendes Pinto (1509-1583), não aproveitou o maior sucesso editorial da literatura portuguesa antiga. O único livro que escreveu, Peregrinação, foi publicado só em 1614, muito tempo depois da sua morte. Foi traduzido para as principais línguas europeias e esgotou edição após edição, durante duzentos anos. A peregrinação epónima é confusa, e traz o seu protagonista de Montemor-o-Velho até Almada, onde acabará por morrer, e onde hoje é comemorado por uma escola secundária; fora do seu concelho fatal também deu o nome a uma cratera do planeta Mercúrio.
Peregrinação é considerado um livro de viagens. Quem viaja tem planos que cumpre, seja em turismo ou em negócios. Fernão comicamente porém nunca consegue chegar onde quer. O ingrediente mais importante do livro é por isso o rapto, e seus verdadeiros heróis são os profissionais liberais para quem o rapto era um modo de vida. Não é apenas o protagonista que é repetidamente raptado. Dezenas de outras pessoas, reféns ou prisioneiras, aparecem-nos retidas contra a sua vontade nos sítios vários onde foram parar. Fernão gosta de descrever animais em estado de não conseguir fazer o que querem.
É todavia famoso entre os doutores pelas suas vistas coloridas do Oriente, e por uma mentirola ou outra. Esta reputação capta mal as suas intenções reais. Não escreveu o seu livro para espantar os conterrâneos (embora possivelmente gostasse do seu espanto), e muito menos para ilustrar a curiosidade da época, ou as proezas dos portugueses no estrangeiro. Interessavam-lhe mais os sustos da sua vida, parecidos com os de um bebé rodeado de adultos que não percebia e não o percebiam, rodeado de objectos cuja utilidade ignorava, estímulos sensoriais desconcertantes, e costumes opacos.
Peregrinação escorre sangue, mas na violência do livro não há nenhuma metafísica da malvadez, apesar de várias alusões à mitologia grega. A sua violência é apenas a série de reacções de quem percebe que foi atirado por terceiros para um planeta variado e incompreensível, e que aprende a fazer o mesmo aos outros. Houve assim sabedoria instintiva em chamar Mendes Pinto à cratera de Mercúrio. Com efeito, o Oriente foi para o portador desse nome mais ou menos como a cratera de um planeta remoto em ebulição; e os seus marcianos eram decididamente mercuriais.
No capítulo 89 Fernão repara que num pagode chinês existem quatro estátuas horríveis “que os entendimentos dos homens quase o não podem imaginar.” Em vez de se calar, ou de, como muita gente antes e depois, elogiar com amor acrescido aquilo que não percebe, decide dizer “o que couber no meu fraco entendimento.” Peregrinação é um repertório extenso e afoito das proezas desse entendimento fraco. Não é a história de um valentão ou de um mentiroso, mas de alguém que como muitos de nós descobriu que podia ganhar a vida a explicar aos outros aquilo que não entende bem.