O discurso de JD Vance em Munique foi tão desavergonhado e ofensivo que nem daqui a cem anos haverá um europeu digno desse nome a perdoá-lo, e ainda menos a compreendê-lo. Cem anos, ouviram? Cinquenta, vá lá. Quinze? Dois anitos, pronto. Um semestre e não se fala mais nisso. Um mês e pouco? Pois é: demorou um mês e pouco até a primeira-ministra da Dinamarca, uma socialista, dar assumida e publicamente razão ao vice-presidente americano, um não-socialista.

Em entrevista ao site “Politico”, Mette Frederiksen, que estava na audiência de Munique, concorda com JD Vance quando este considera a imigração em massa uma ameaça ao nosso, digamos, “modo de vida”. Pelos padrões da “argumentação” em voga, isto habilita a sra. dona Mette a ser acusada de “islamofobia”, “nacionalismo”, “fascismo” e, dado que ela também associa o anti-semitismo a sectores da extrema-esquerda e a certas comunidades de imigrantes, “nazismo” (a linguagem e a memória foram de tal maneira esventradas que condenar o anti-semitismo é meio caminho andado para se ser “nazi”). Aliás, a sra. dona Mette beneficia de semelhantes acusações desde 2019, altura em que começou a endurecer as regras de hospitalidade, asilo e deportação.

A questão é: irá a tempo? Quer dizer, para os “activistas” do costume a questão é saber o dia em que vai ocorrer a próxima manifestação pelos “direitos humanos” em Copenhaga, mas as pessoas que não padecem de ócio excessivo interessam-se é por perceber se o aperto das fronteiras, intenção recente e comum a alguns governos da UE e arredores, chegará para solucionar o problema entretanto criado por uma década de fronteiras escancaradas.

Duvido. Sob o alto patrocínio e a altíssima irresponsabilidade de Angela Merkel, depois alastrada a um continente acossado por “líderes” de plástico, sedentos de ilusionismos demográficos e de ficar bem no retrato do “multiculturalismo”, num ápice a Europa dita ocidental quase duplicou a quantidade de pessoas chegadas de outras paragens. São demasiadas pessoas para acomodar com decência ou – acontece bastante – sem decência para se acomodarem, muitas pessoas para as que cá estavam rejeitarem e para rejeitarem as que cá estavam, pessoas suficientes para testar o que sociólogos falecidos designavam por “coesão social” e ver o teste reprovado. Na Dinamarca e onde calha, a reversão ou a promessa de reversão de políticas suicidas não implica a reversão das consequências dessas políticas, possivelmente irreversíveis.

A maçada é que o número de imigrantes nem sequer é o critério fundamental para aferir a loucura a que descemos. No discurso do escândalo, JD Vance não identifica exactamente os imigrantes como uma ameaça: a ameaça, no entender dele, são os senhores que lhes permitiram a entrada sem ponderação, os senhores que suprimem os factos desagradáveis e as opiniões “ofensivas”, os senhores que mandam calar, os senhores que mandam. São estes a causa directa da loucura em curso, e é deles que, antes de tudo, a Europa se deveria livrar caso os optimistas queiram guardar uma pontinha de esperança.

Os realistas já não guardam pontinha de nada. Stratford-upon-Avon é a cidade inglesa onde nasceu e cresceu Shakespeare. Há por lá uma instituição Shakespeare Birthplace Trust (SBT), fundada em 1847 para cuidar dos lugares associados ao escritor e, para usar o cliché, promover o seu legado. Talvez cansada da redundância que é a promoção de um génio universal, a SBT passou a tentar despromovê-lo. Agora a ideia é questionar a celebração tradicional de Shakespeare, que pelos vistos mostra apenas uma perspectiva britânica, eurocêntrica e “branca” e ignora “outras vozes”. Parece-me oportuno: além de ser intolerável que Shakespeare não fosse aborígene e preferisse expressar-se em verso iâmbico do que através de tatuagens, não faz sentido evocá-lo sem meter ao barulho três ou quatro líricos do Bornéu. E é ridículo que os lugares do bardo não acolham cinco ou seis certames alusivos aos malefícios da supremacia racial e à lembrança de que “Rei Lear” ou “A Tempestade” não existiriam sem a contribuição dos zulus. Em suma, o que a SBT deseja é “descolonizar” o berço de Shakespeare, que num futuro breve pode perfeitamente acabar geminado com Gaza e convertido à consagração da riquíssima literatura LGBT da Palestina.

Para a frente, que o caminho faz-se caminhando – com botas pesadas por cima de séculos de História atroz e gloriosa e verdadeira. Descoloniza-se Stratford-upon-Avon como se descoloniza o UK como se descoloniza a Europa em peso. O europeu que deixou de caber nas ex-colónias começa hoje a não caber na Europa. Não é só no reino da Dinamarca que alguma coisa apodreceu. E “Hamlet” termina em sangue.