John Lennon pediu que imaginássemos um mundo sem religião. Para ele esse seria um mundo de paz. Em Portugal, tivemos algo parecido. Era preciso libertar quem tinham tentado prender “impondo uma fé”. A verdade é que a ideia de que um mundo melhor seria, necessariamente, um mundo sem religião fez caminho. Atingiu-nos a nós. Limitou conceitos. Criou novas formas de opressão.
Um santo não é um sábio. Um pecado não é um erro. A caridade não é só solidariedade. A paz não é bem-estar. A esmola não é simples generosidade. No Cristianismo há uma dimensão de espanto e um desassossego que a sabedoria, o erro, a solidariedade, o bem-estar ou a generosidade deixam para trás, por mais sinceras que sejam. Sem ofensa ou superioridade.
Ao que parece esta é a época para “olharmos para nós próprios”; a altura do ano em que devemos dar “o melhor de nós”. Para um crente, como, talvez, para todo o ser humano pouco acomodado, isso é brutalmente insuficiente.
Dizer que o problema do mundo é falta de Deus é uma ideia impopular. Parece infantil, medieval, irracional. Mas há algo nela que pode ser salvo. E nada mostra melhor isso que esta época do ano.
Quando cantamos que All I want for Christmas is you, existe algo de tão profundamente verdadeiro como de tremendamente incompleto no que dizemos. Nada supera a vida de quem amamos, mas, como escreveu Stig Dagerman, há alguma coisa na nossa necessidade de consolo que “é impossível de satisfazer”. Por isso, o “tu” que queremos perto só é luminoso na medida em que transporta em si alguém que não é seu, que não é só daquele encontro ou daquela hora marcada. E, nesse sentido, falta-nos Deus. Talvez, imensamente.
Henri de Lubac chamou a isso O Drama do Humanismo Ateu. Não se trata da rabugice habitual da quadra. É algo diferente. No fundo, o teólogo francês quis denunciar, no final da II Guerra Mundial, as consequências que derivam da negação da alteridade. E é fácil de perceber porque é que isso é tão apetecível.
Quando, em 2010, Bento XVI falou no Westminster Hall, abordou o tema e explicou como isso destrói a sociedade. Em primeiro lugar, porque a falta de alteridade dificulta a liberdade e impede a revolta contra o soberano. Em segundo lugar, porque se a racionalidade não for confrontada com algo exterior a si, se o papel purificador da alteridade – Ratzinger falou em fé e religião – não estiver disponível, a razão transformar-se-á numa simples projeção dos caprichos dos governantes. Em terceiro lugar, porque, como ele tão bem referiu, “a inadequação de soluções pragmáticas, a curto prazo, para os complexos problemas sociais e éticos foi ressaltada pela recente crise financeira global. Houve um consenso sobre o facto de que a falta de um sólido fundamento ético da atividade económica contribuiu para criar a situação de grave dificuldade na qual hoje se encontram milhões de pessoas no mundo inteiro.”
Em certa medida, este é o problema expresso no livro do Êxodo. O sistema teológico e político egípcio contrapõem-se ao sistema teológico e político proclamado por Moisés. O Egipto é governado por um homem concreto cuja existência é divinizada. O Povo de Israel é governado não por Moisés, mas por Deus cujo nome é: “Eu sou aquele que sou”. Vai uma diferença. E uma diferença claramente incompatível com a ideia de que “precisamos de cuidar de nós”, de que “se quisermos, nós podemos”, de que “nós somos a nossa própria paz”, de que “tudo o que vai volta”. E essa já não é a sempre saudosa ética republicana. É a ética dos charlatães.
O Êxodo não foi apenas um evento de libertação política ou social. Foi uma libertação teológica: uma libertação da idolatria. É isso que nos falta. Por isso, a idolatria regressou e as velhas formas de absolutismo estão de volta. Hoje somos escravos dos valores universais: escravos da tolerância, da igualdade, da fraternidade, da transparência, do pluralismo e da sustentabilidade, porque cada um deles começa e termina em si mesmo. Nascem e findam sem alteridade, sem tensão, sem angústia. Já não devemos perdoar os outros. Temos que nos perdoar a nós próprios. Já não há o tão Kierkegaardiano “salto da fé”. Há só o sentar da fé. Já não há liberdade. É só conforto.