O romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz (1845-1900), começa com uma escorregadela. Quem cai é o avô do herói, que vai morrer de outra causa umas páginas depois. “Descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta,” explica o autor, “escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo.” Tudo parece normal. A Travessa da Trabuqueta fica em Alcântara, um bairro conhecido de Lisboa; e as cascas de laranja fazem escorregar a maior parte das pessoas. Não obstante toda a história ser inventada, as frases são como as do costume.
Inventar uma história, excepto para pregar uma mentira (o que não é o caso), não parece muito normal. Porque é que alguém o faria? E será que numa história inventada se pode escorregar numa casca de laranja que não existe? As histórias inventadas são-nos porém muito mais familiares que a poesia. A poesia não se passa quase nunca em Alcântara, e às pessoas que lá aparecem não acontece tão frequentemente escorregarem; mas sobretudo um poema parece menos inventado e mais escusado que a história de uma queda em Lisboa. Os poemas são como cadeiras: não dizemos que as cadeiras são inventadas; mas, consideradas maneiras mais anatómicas de nos sentarmos, qualquer cadeira parece escusada.
Antes de morrer, o avô de Alcântara foi pai de um filho (o pai do herói), que também não durou muito. Nos romances de Eça de Queiroz, como nas grandes histórias de Walt Disney, não há quase pais. Esse pai, informa Eça, era um “menino amarelinho, molezinho, coberto de caroços e leicenços.” A palavra “leicenço” intriga. É um termo técnico, de etimologia obscura, que quer dizer furúnculo em certas províncias. Mas podia não ser: a uma história inventada basta que uma palavra obscura cheire a termo técnico. Os pormenores técnicos são como Alcântara, e cascas de laranja, nos romances.
Eça porém não escreveu bem “leicenço”: escreveu “caroços e leicenços.” Escapa-nos a quase todos a diferença entre caroços e leicenços. Eça não tentou esclarecê-la, nem parece achá-la importante. Porque terá precisado ele de duas palavras? Se gostava de pares podia também ter escrito ‘caroços e furúnculos’, ou ‘tumores pequenos e borbulhas.’ Todos sugerem diferenças que só os lexicógrafos e os dermatologistas percebem. Porquê então essa diferença que não faz diferença, essa diferença escusada?
“Caroços e leicenços” é como ‘trocas e baldrocas.’ Ninguém sabe bem o que seja uma baldroca, a não ser que se segue imediatamente a uma troca, como nos cafés e nas repartições de Lisboa o maravilhoso aviso ‘no smokers’ se segue ao menos maravilhoso ‘não fumadores.’ Mesmo nas histórias mais inventadas há surpresas destas. Basta o choque delas sentir-se um pouco e fazem-nos esquecer a história mais laboriosa; e lembramo-nos de que não estamos em Alcântara, entre cascas de laranja. A poesia é como a expressão “caroços e leicenços.” Eça estava a fazer poesia sem saber.