Pessoas esclarecidíssimas já comprovaram cientificamente que os EUA resvalaram para o fascismo. O presidente é Hitler. O vice-presidente é Hitler. O sr. Musk, antigo herói dos carrinhos eléctricos e do Starlink na Ucrânia, é Hitler. Etc. Pelos meus conservadores cálculos, o governo de Washington/Palm Beach tem uns 87 Hitlers, fora assessores. Sobra, para conduzir o “mundo livre” ou coincidir com ele em exclusividade, a Europa.
Milhões de europeus entraram em êxtase com as recentes proclamações dos seus líderes, que prometem defender a democracia até ao último ucraniano e armar-se até ao último cêntimo do contribuinte, ou até ao último suspiro inflacionista. A Europa, em sentido lato e ao que consta por aí, despertou e agora não há maneira de a segurar, nem sequer na Fidelidade. Respira-se um ar limpo e juvenil, um orgulho ressuscitado, um estado de comunhão continental que nos une a todos, de Alcabideche a Belgrado, de Edimburgo a Istambul. Istambul? Sim, que para proteger um país invadido pelos russos regressou a conversa de integrar na UE um país que há meio século invadiu e ocupa ilegalmente um terço do território de um país da UE, além de acarinhar arménios. Assim é que é bonito.
Certo é que a Europa não pode respeitar ditadores, principalmente se o ditador se chama Putin e sobretudo se esquecermos o longo período em que o “mundo livre” ignorou a invasão da Geórgia, a anexação da Crimeia e a eliminação de adversários por envenenamento e continuou a “apaziguar” – e a patrocinar – o regime russo. Hoje, e o presente é que importa, a Europa já gasta quase tanto em ajudas à Ucrânia quanto em negócios com o regime russo. Assim dá gosto.
Se a América de Trump se junta a torcionários, a América não voltará a contar com a Europa sempre que a Europa precisar que a salvem de maçadas. A Europa, motivada e renascida, só tem olhos para quem respeita os direitos humanos. Por isso a Europa, seja a UE ou países soltos, despeja dinheiro e vénias pelos corajosos guerrilheiros que tomaram conta da Síria e que, por compaixão, desataram a chacinar aldeões de crenças variadas. Por isso a Europa anunciou um justíssimo apoio de 4,7 biliões de euros à África do Sul, de modo a facilitar a “transição energética”, a “conectividade digital e física” e o assassínio de fazendeiros brancos. Por isso a Europa mantém com determinação o financiamento de Gaza, que paga causas humanitárias como as infra-estruturas do Hamas e a logística do sequestro, tortura e morte de reféns “sionistas”. Assim vale a pena.
Tirando séculos de despotismo, guerras e, apenas no séc. XX, resmas de ditaduras e uns genocídios, a Europa é o berço da liberdade, um berço cujo embalo se reforça com a deriva americana e com os pergaminhos dourados dos nossos actuais líderes. Na Europa somos livres de aceitar sem amarras nem fronteiras milhões de imigrantes com costumes exóticos e enriquecedores do “tecido social”. Na Europa – ou em partes da Europa, mas em breve o direito alastra – somos livres de não ofender uma religião em particular para não ter problemas com a polícia e os tribunais. Na Europa somos livres de não dissuadir com escusada severidade violadores de menores (ou maiores) e os já tradicionais esfaqueadores de transeuntes, contanto que haja a atenuante do “choque cultural”. Na Europa somos livres de agitar a bandeirinha da “Palestina” em manifestações adequadamente anti-semitas. Na Europa somos livres de escolher pelos romenos um presidente que eles não escolheram. Na Europa somos livres de aplaudir os chefes alemães a desprezarem o parlamento eleito para sabotar o limite constitucional à despesa em defesa. Na Europa somos livres de promover a ciência que garante haver 72 “géneros” (para a semana descobrem mais dois ou três). Na Europa somos livres de ter um trabalhão a separar a tampa da garrafa para resgatar o planeta. Na Europa estamos a caminho de ser livres de não poder espalhar “desinformação” que contraste com a informação oficial e séria. Assim é falar, e assim é calar.
E Portugal? Portugal, nação valente, tem-se mostrado à altura das responsabilidades e ao lado da Europa (o lado esquerdo no cantinho cá de baixo, se consultarmos um mapa) nesta hora de turbulência e afirmação. Se a ideia é isolar a Rússia, Portugal promete não voltar a passar informação confidencial à embaixada deles e está disponível para ser drástico nas sanções, logo que estas não afectem em demasia a venda de “vistos gold”, a importação de gás natural para o terminal de Sines e a exportação de fruta, vinho e sapatos para Moscovo e as províncias.
Se a ideia é enxovalhar os EUA, o enxovalho está em curso: um artista de variedades indígena prometeu vender o seu Tesla, o ministro Nuno Melo cancelou uma decisão que nunca havia sido decidida acerca da compra de uns caças americanos, e eu próprio, que visitarei aquele atoleiro de nazis em Abril, tenciono usar o símbolo da UE na lapela e não adquirir umas Levi’s a título de punição adicional.
Se a ideia é participarmos na colectiva corrida às armas, pelo menos sabemos que o ex-almirante, e futuro monarca, Gouveia e Melo deixou a Marinha preparada: a fim de não haver surpresas em combate, este mês afundou-se um navio-escola e avariou-se um submarino (ainda sobra outro).
Se a ideia é reagir em conformidade à instabilidade internacional, Portugal fez cair o governo.
Portugal encontra-se perfeitamente sincronizado com a Europa e a Europa encontra-se perfeitamente sincronizada com a herança que nos deu Brunelleschi, Newton, Dickens e, há tempos, a dona Ursula. A civilização mora aqui (de momento não está ninguém em casa).