Tenho passado horas a ver fotografias de prateleiras e cabides repletos de objectos e peças de roupa. A vida neste começo de século é este labirinto estúpido em que, sem sair de casa, podemos perder-nos até ficarmos tontos. Para nos perdermos, já não precisamos de movimento. Estar perdido não é consequência de se ter ido a algum lado, fazer alguma coisa, mas apenas um efeito colateral do aborrecimento ou do capricho. Talvez seja assim há séculos, mas agora confessamos as senhas da nossa desorientação à grande mente que nos vai indicando o nome das ruas onde havemos de nos perder, navegando horas a fio, nas galerias da internet. Usar um motor de busca electrónico para encontrar coisas perdidas é talvez a mais pleonástica das actividades. Que outra coisa é o motor de busca senão um monumento às coisas esquecidas — a maior secção alguma vez inventada de perdidos e achados — de que nos servimos para nos lembrarmos de que as esquecemos e para nos esquecermos enquanto procuramos por elas, figuras que somos, cada um de nós, utilizadores, desta amnésia irreparável e colectiva?
São salas e salas, um mar de guarda-chuvas, rios de casacos, caixas com carteiras, cachecóis, chapéus. As coisas estão perdidas, órfãs de pai e mãe, cuspidas da engrenagem do capitalismo, desprovidas de qualquer valor de troca. Estão marcadas pelo tempo, usadas, gastas, em segunda-mão. Percorro páginas e páginas de pertences, que não se encontram à venda, mas estão ali porque alguém os perdeu — e, como me acontecia, quando deambulava por feiras da ladra, em domingos também perdidos, provocam-me uma mesma impressão de fastio e saturação, fico enjoada de pessoas, sou assolada por uma súbita melancolia misantrópica, parece-me ter passado a tarde a tagarelar com um bando de gente, quando na verdade só vi fotografias de coisas que não falam.
Casacos que ainda guardam o perfume e o suor dos donos. Luvas deformadas pelas mãos que as costumavam usar. Chapéus nos quais ainda se encontram fios de cabelo, com a forma das cabeças nos quais assentavam. Cadernos que ainda são de alguém, cheios de rabiscos e pensamentos.
A minha misantropia diante das imagens é talvez a que a sente o guardião de uma grande secção de perdidos e achados. As coisas estão perdidas mas tresandam a gente e a secção de perdidos e achados é quase um orfanato. É o sr. Luís Lépine, trabalha cá há vinte e um anos. Já foi novo, e envelheceu aqui. Quando aqui chegou não sabia que ficaria tantos anos e, agora, são os seus casacos que cheiram ao hálito dos perdidos e achados. Luís Lépine é um indivíduo pacato, mas tresanda a estranhos.
Penso nele e voo de passagem sobre o meu fastio. Às vezes, custa mais a ideia de gente do que a gente. Custa mais a pegada do que a presença. Mais a destruição que deixamos do que o convívio enquanto aqui estivemos juntos. Lépine é o burocrata da honestidade, que passa o dia isolado numa sala sem luz natural, tem um pouco de anjo da guarda, de polícia, de contemplador da virtude. Pensei neste homem ao ler sobre uma linhagem de funcionários do Grand Central Terminal, que durante décadas guardaram objectos perdidos na estação nova-iorquina. Mas nem a ternura insólita do seu testemunho e a sordidez e a candura dos seus achados me limparam desta impressão de que deve ter sido duro viver tantos anos no arquivo de coisas perdidas, que ainda hoje guarda, em simultâneo, 150 000 objectos perdidos. 150 000 objectos perdidos são como 150 000 pessoas perdidas. São como 150 000 objectos órfãos.
Nada é novo — e alguém, um nome, uma vida, uma história — está inscrito em cada objecto da forma como nos inscrevemos nas coisas. Deformando-as, marcando-as, gastando-as. Já não importa a quem os perdidos pertenceram, porque encarar a sua deformação é encarar novas formas e imaginar a quem poderiam pertencer. Saindo do circuito da propriedade, os perdidos cruzam a fronteira do imaginário. Pouco importa de quem foram, porque agora são de quem poderiam ter sido. Têm qualquer coisa de terem sido perdidos, mas também de perdidos com aqueles que a perdição perdeu. Lépine não é só o funcionário brando, mas o depositário de uma história invisível e especulativa à qual ele acima de todas as outras pessoas tem acesso, fechado nas catacumbas dos perdidos e achados, rodeado das coisas dos outros. A história de quem poderiam ter sido os donos dos perdidos, que o bom Lépine se entretém a imaginar enquanto trabalha na catalogação e restituição dos objectos que lhe foram confiados. E então ele é a figura também do bom homem que faz as coisas falarem, à volta das quais as coisas sem fala dançam, ganham vida e agem.

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