Por certo influenciado pelas inúmeras leituras jurídicas que um dia fez de Platão – para quem as Formas, imutáveis e eternas, constituíam a base do verdadeiro conhecimento – Marcelo Rebelo de Sousa derramou recentemente sobre a turba ignara doutíssima preleção sobre o risco e fragilidade de um certo entendimento sensitivo – os clássicos chamavam-lhe doxa (opinião) – cujos objetos de percepção, em virtude da sua exclusão do ser verdadeiro, não podem ser matéria de verdadeira compreensão.
Os modos e os termos com que se dirigiu a duas senhoras, mãe e filha, nas ruas de Montreal, foram na verdade uma manifestação (mais uma!) daquela sensibilidade pedagógica com que um verdadeiro mestre alcança lobrigar, mesmo na mais enfadonha trivialidade, pretextos para reflexões ponderosas e graves – no caso em apreço, a estética e a epistemologia de um decote – e que apenas o azedume e a má-fé poderiam confundir com alarve rudeza ou senilidade: se ainda na semana anterior a compleição física de uma outra senhora tinha sido ocasião para dissertar sobre a resistência dos materiais e a queda dos graves, como não aproveitar um decote para sondar a inutilidade de todo o humano esforço… Ora vejamos.
Na verdade, a doxa é um juízo cuja verdade não foi ou não pode ser apodicticamente demonstrada, pelo que a afirmação “a filha é mais bonita do que a mãe”, longe da brejeirice aselha a que soa, procura tornar evidente que, por se fundamentar em razões apenas prováveis, a anuência que esta opinião solicita está intrinsecamente manchada pelo medo de errar. Desengane-se quem aqui viu um motejo machista, quando não passou de melancolia marcelista pela descoberta de os objectos de opinião estarem condenados a vogar, quais diplomas entre Belém e S. Bento, pelo mundo instável e fluido da matéria e do devir, entre o ser e o não-ser. O que verdadeiramente aflige o Presidente é a possibilidade de, à semelhança dos objectos estéticos da sua apreciação, também as suas opiniões poderem, fora do proscénio mental onde em tronco nu se passeia, ser precárias e efémeras, maculadas pela inutilidade e pela ominosa sombra da morte. Donde a frieza da mais estoica das conclusões, digna de uma epístola de Séneca: “we are bacalhau”.
Angustiado perante essa certeza, Marcelo abdica sabiamente de mortais afãs e prescinde de insensatas batalhas contra o destino: diante da inexorável cavalgada da morte, não poderia senão rematar o seu arrazoado, em jeito de peroração, com a expressão de uma sincera preocupação pela saúde da jovem – “A filha ainda apanha uma gripe, já viu bem, com o decote?” – demonstrando desse modo que, entre ciência e ignorância, o frágil conhecimento que nos consente a doxa se caracteriza por uma origem espontânea, quase epifânica, e que, abrangendo toda a espécie de enunciados, dispensa qualquer fundamento científico, tal como a impulsiva e idiota (lá está!) relação entre gripe e frio cabalmente patenteia.
E, no fim, no momento de desligar o televisor, não sei se triunfa o choro ou o riso: para além do constrangimento e do ridículo, tudo isto tresanda a decadência de fim de festa, como quando vamos dar, nas traseiras da tenda, com aquele primo, que veio sozinho à boda, a fumar um cigarro com os rapazes do catering que, exaustos, já só querem que ele se cale para poderem ir para casa.
O palco consentido a este triste arlequim, aos seus caprichos e facécias, faz com que de repente nos soe familiarmente anacrónico e contemporâneo o petulante e caturra barroco francês: também então, enquanto o mundo fermentava futuros, acoitando radicalismos políticos e estéticos – cevados, como sempre, a alheamento e a indiferença – os compositores gauleses da época afirmavam, com a mesma desarmante candura com que empoeiravam perucas e abusavam de rapé em caixinhas de laca, escondidas naqueles inefáveis punhos de renda, que a função da música era a do nobre entretenimento duma corte ridícula, alienada e saltitante, entre o Petit Trianon e o Salon de Saturne.
Orelhudo, arrogante, quadrado e binário, o barroco francês era, tal como Marcelo, preciosamente fútil no seu desprezo por qualquer conteúdo, na incensação da pilhéria, do dichote inábil, de uma melancolia sem qualquer esperança pois sobre tudo vela, untuosa e lasciva, aquela insolência pueril de, aos olhos da família, se achar engraçado. Tudo é tão alheio e verosímil: os lustres brilham, o soalho é imaculado, as portas abrem-se naturalmente para obscenas fartanças e os tectos e as paredes em trompe l’oeil para jardins e paraísos enquanto, do lado de fora dos portões, germinam, lentos e pacientes, mundos com que Versailles jamais sonhara.
Serão as figuras de Marcelo no Canadá – opera buffa deste nosso barroco – divertimento ligeiro? Não, antes angústia de uma sombra que se abate, celebração festiva de uma trágica condenação, febril fruição da inexorabilidade do abismo.
Confrontado com a inconveniência das suas palavras, Marcelo confessou com cândida perplexidade: “Não me diga. Não sei o que hei de comentar.” Foi qualquer coisa como isto que Marie Antoinette sussurrou naquela manhã na Praça da Concórdia. Ou isso ou “nous sommes bacalhau”.
Nada como marchar para o desastre ao som de Rameau.