A crise política atual mostra o plano inclinado em que estamos. Uma democracia que repete miniciclos eleitorais e governativos de um ano está votada ao fracasso. Uma democracia que é incapaz de encontrar soluções governativas minimamente estáveis cria o ambiente propício para soluções autoritárias de governo e para políticos salvadores da pátria. Já sabemos o que isto é.

Há hoje, fruto de um conjunto de casos e casinhos passados, um enquadramento legal e regulamentar bastante mais denso no que toca à transparência no exercício de funções políticas que não existia no passado e que estou convicto que a maioria dos políticos em exercício, ou aspirantes a políticos, não conhece em detalhe ou não lhe dá a devida importância. Este novo enquadramento jurídico (do qual fui co-legislador) não impede de maneira nenhuma que um empresário se torne político. Prevê até mecanismos para que essa transição se possa fazer em caso de participação significativa no capital social da empresa.

Para o caso do primeiro-ministro o regime de exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (RGEFTCP) e o código de conduta do governo (CCG) parecem-me suficientes para, apesar de não ser jurista, perceber que Luís Montenegro (LM), só por aquilo que já se conhece, parece ter violado normas de ambos. Em relação ao RGEFTCP sugiro ao leitor ver os artigos 6º, 8º e 9º. Referem claramente, e resumo para este caso, que se um titular de cargo político nos três anos que antecedem a investidura no cargo, detiver por si ou conjuntamente com o seu cônjuge e descendentes mais de 10% do capital (ou mais de 50.000 euros) de uma empresa  não pode intervir nem em contratação pública com o Estado nem em  procedimentos administrativos que aquela empresa seja destinatária da decisão, designadamente a concessão ou modificação  de licenças. Ora LM e familiares diretos detinha, não 10%, nem 20% mas 100% da empresa, que era efetivamente dele. A avença mensal recebida  pela Spinumviva pela Solverde, sabendo-se que no final do ano poderia ser renovada a concessão do casino de Espinho, é já uma potencial violação dos artº 8º e 9º. LM afirmou porém, apenas posteriormente a saber-se que era um dos clientes da sua empresa, que não iria participar nessa decisão. Acontece que o Código de conduta do governo  (art-7º n. 4) refere que “qualquer membro do governo face a um conflito de interesses, atual ou potencial, deve tomar as medidas necessárias…”. Será que LM necessitou das notícias virem a lume para perceber que existia um insanável conflito de interesses para os quais era necessário tomar medidas?

Será que entre os outros clientes da Spinumviva, mesmo que menores em termos de faturação, haverá alguma entidade pública? É que se sim cai-se nos impedimentos da contratação pública vedados a um titular de cargo político. Não sendo a violação destas normas um crime, são certamente ilícitas e eticamente reprováveis. Luís Montenegro é sem dúvida o principal responsável por esta crise política. Por não ter tomado as medidas necessárias para evitar violar o RGEFCTP em conjunção com o CCG, por ter avançado com uma moção de confiança que já sabia de antemão iria ser chumbada, após Pedro Nuno Santos sempre ter dito que o faria. Não é demais relembrar que o PS contribuiu um pouco para a estabilidade política ao votar contra a moção de censura do Chega, ao se ter abstido na do PCP e ao viabilizar este orçamento do Estado. Ou seja LM poderia governar até Julho de 2026 pelo menos (o novo Presidente não poderá dissolver a AR nos seus primeiros seis meses) mesmo que tivesse de governar em 2026 em duodécimos caso o seu próximo orçamento fosse reprovado. O problema, claro está, é o que poderia resultar (ou poderá caso LM ganhe as eleições) da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) durante esse período.

Se não há dúvidas que Luís Montenegro, não o PSD, nem o governo, tem o grosso da responsabilidade nesta crise política, não deixo de atribuir alguma ao Chega, que sempre pugna pela instabilidade política para ofuscar males internos, e ao PS por adotar uma tática política que me merece bastantes reservas. A CPI foi, e será porventura, caso o PS fique na oposição — ou porque perdeu as eleições ou porque ganhou e não conseguiu, com um minoria governativa, fazer face a uma maioria de direita parlamentar – a principal arma de ataque do PS. Acontece que o requerimento da CPI é claramente ad hominem, ou seja visa especificamente e nomeia Luís Montenegro. Será que a Constituição e a Lei sugerem este tipo de CPI visando um primeiro-ministro que viola alguns deveres do seu regime jurídico e do código de conduta? Não sou constitucionalista, mas leio a Constituição (nº1 do artº 191): “o primeiro-ministro responde politicamente perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do governo, perante a assembleia da república.” Ora será este o caso com a CPI? A CRP prevê a forma como se demite um governo e se exonera o primeiro-ministro e não por acaso a sanção pela violação do regime jurídico dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (artº 11º do RGEFTCP) é a perda de mandato (casos eletivos) ou a demissão (cargos de nomeação) com a excepção do primeiro-ministro. Ou seja, não parece estar prevista neste regime jurídico a sanção para o caso particular do primeiro-ministro e isso deve-se a não dever ser regulada por lei ordinária, mas pela Constituição.

Tenho sérias dúvidas que a luta política em relação a um primeiro-ministro, qualquer que ele seja, deva passar pela constituição potestativa de comissões parlamentares de inquérito sobre matérias que não versam a responsabilidade política do governo. Se houver factos que indiciem crimes, por exemplo recebimento indevido de vantagem, deve ser o Ministério Público a investigar e não uma CPI. Dos maiores riscos para a democracia é não saber interpretar a separação e interdependência de poderes prevista, e bem na nossa Constituição, ou seja, cair-se na judicialização da política ou na politização da justiça.

Luís Montenegro é o grande responsável desta crise, mas é apenas um epifenómeno da crise da democracia. Tudo indica que as próximas eleições não só não irão resolver nada como irão fazer aumentar os abstencionistas os votantes em branco e os nulos. Eventualmente deixarão o país numa situação pior do que já está. Não é com estas eleições, ou as próximas, que se combaterá o declínio evidente da nossa democracia.

É com uma reforma das instituições, uma melhor seleção dos atores políticos e uma mudança da cultura política dominante que promova o diálogo e o compromisso. O problema é que o atual modus operandi democrático não o permite. O que me preocupa não é apenas a incapacidade dos atores políticos atuais em entender o declínio da democracia, é também o silêncio e a inatividade dos não políticos.

PS1. O livro “A Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio?” Edições Almedina, versa precisamente sobre os aspetos estruturais da crise da nossa democracia com algumas propostas para ultrapassar o seu declínio.   

PS2. Sugiro ainda a leitura dos artigos de Teresa Violante ao enfatizar a necessidade de tirar ilações institucionais deste caso, da Susana Peralta, que aborda outros aspetos da legislação aqui referida, e o de Francisco Mendes da Silva (FMS) que explica porque é que o PSD jamais substituiria o líder antes das eleições à semelhança do que fizeram os conservadores ingleses com Johnson e Truss (e, acrescento eu, Margaret Thatcher!). FMS toca num ponto chave que nos é caro: o sistema eleitoral.