1 Na manhã de ontem (Domingo, 16 de Março) fui muito agradavelmente surpreendido por duas crónicas surpreendentemente convergentes de dois bons amigos britânicos com disposições políticas rivais: refiro-me a Timothy Garton Ash, ao centro-esquerda e desde sempre anti-Brexit, e a Daniel Hannan, ao centro-direita e clássico defensor do Brexit.

Não seria possível resumir aqui a densa riqueza intelectual de ambas as crónicas [a de Timothy no Guardian de sábado, que eu recebo aos domingos na sua Newsletter “History of the Present”, a de Daniel (agora Lord Hannan) no Sunday Telegraph, de que sou assinante]. Mas talvez me seja permitido tentar aqui um resumo pessoal daquilo que mais me impressionou no que senti como uma inesperada (e, quanto a mim, muito promissora e significativa) convergência entre ambos.

2 Em primeiro lugar, a comum enfática condenação da política externa de Trump, que ambos classificam como chocante rutura com a clássica tradição euro-atlantista dos EUA. Lord (Daniel) Hannan vai mesmo ao ponto de escrever: “Suponhamos que Donald Trump estava secretamente a trabalhar para Putin. O que é que ele estaria a fazer diferentemente daquilo que está a fazer?”.

Esta é uma asserção muito forte que seria normalmente associada à esquerda (talvez mesmo à esquerda radical) anti-Trump. Mas o seu autor, Lord Hannan, é um distinto membro do Partido Conservador britânico, com assento na Câmara dos Lordes, e um clássico defensor do Brexit e da “relação especial anglo-americana” (uma expressão cunhada por Winston Churchill).

Daniel faz aliás questão de enfatizar que condena Trump em nome dessa mesma Churchilliana relação especial entre os povos de língua inglesa – e acusa Trump de estar a atraiçoá-la. Defende, em contrapartida, uma abertura à colaboração com a União Europeia (mantendo, no entanto, a defesa do Brexit) e, sobretudo, o reforço da aliança com o Canadá, Austrália e Nova Zelândia – uma aliança a que a as Nações Unidas terão cunhado a expressão Canzuk.

Para concluir enfaticamente este breve resumo da crónica de Daniel Hannan, talvez seja apropriado recordar o título (a seis colunas) da sua crónica no conservador Sunday Telegraph: It´s time for the English-speaking world to come together – but we can no longer rely on the US”.

3 Depois destas enfáticas e, para alguns, surpreendentes declarações do Conservador Daniel Hannan, talvez fosse difícil encontrar também surpreendentes declarações do nosso também amigo Timothy Garton Ash, um euro-atlantista desde sempre posicionado ao centro-esquerda.

Mas é ele que se encarrega de nos dar a surpresa: “Agora, confrontados com Donald Trump, um presidente americano pondo em causa um comprometimento americano de 80 anos para com a defesa da Europa contra a Rússia, euro-atlantistas de toda a vida como eu têm de reconhecer que nós precisamos não apenas de uma Europa com mais ‘hard power’ – algo que eu sempre defendi – mas também a real possibilidade de uma europeia ‘autonomia estratégica’.

Em seguida, o nosso amigo Timothy Garton Ash converge inteiramente com a condenação de Trump subscrita (um dia depois) pelo nosso amigo Daniel Hannan: “Ameaçada por Putin e Trump, a Europa tem de se defender a si própria”.

E, para culminar, recordarei o título bombástico da crónica de Timothy: “Vive le Churchillo-Gaullisme!”.

4 Resta-me, com muito gosto, saudar esta convergência ocidentalista entre dois amigos com disposições política rivais: como referi acima, Timothy Garton Ash ao centro-esquerda, Daniel Hannan ao centro-direita. Nos bons velhos tempos, (antes das redes sociais e dos populismos da extrema-direita e da extrema-esquerda), chamávamos a esta convergência ocidentalista o “Centro-Vital”.

Tratava-se verdadeiramente do “Mistério da Democracia Liberal Ocidental”: um regime baseado na concorrência e rivalidade entre, pelo menos, dois partidos rivais, os quais – simultaneamente e paradoxalmente – concordavam enfaticamente com as regras comuns da sua concorrência (registadas na Constituição) e, por esse mesmo motivo, na defesa comum da democracia liberal contra os seus inimigos, internos e externos.

5 Num mundo cada vez mais caótico e imprevisível, a boa notícia é que podemos estar a assistir ao renascimento do Centro Vital no Ocidente.