Foi há cinco anos e só a turbulência dos dias que vivemos não deixou pensar nisso como talvez devêssemos. A corrida aos supermercados, as despensas abastecidas para tempos indefinidos, o trabalho inteiro a migrar para um canto de casa, em chinelos e reuniões zoom, as portas fechadas, as cidades desertas, vagos vultos a caminharem pela rua a muitos metros de distância olhando-se com desconfiança, o vento a arrastar pela estrada duas ou três máscaras cirúrgicas usadas para dar a tudo um ar de apocalipse ainda mais zombie. As conferências de imprensa diárias na televisão e a entrada em circulação de novas expressões como “uma falsa sensação de segurança”. A escalada dos números de casos, internamentos e mortes, a busca nos confins da internet por notícias que explicassem a origem do vírus, por que parecia afectar uns e não outros, as possíveis soluções milagrosas e os relatos segundo os quais as autoridades sabe-se lá de onde andariam a esconder sabe-se lá o quê acerca dos efeitos secundários da doença e da cura.
Depois, o tempo foi passando. As renovações dos estados de emergência suspendendo a Constituição como se fossem mero pro forma, os confinamentos e desconfinamentos sem coerência já visível, os recolheres obrigatórios de que só ouvíamos falar nos países em guerra, válidos à sexta, mas não sábado, como a máscara que se podia tirar para comer, mas não para falar, as leis específicas para as vendas ao postigo, a proibição de sentar num temível banco de jardim, a vacina que nunca mais vinha, as filas de ambulâncias à porta dos hospitais, o silêncio já insuportável das cidades só cortado pelo som das sirenes e das motas dos estafetas de tudo e mais um par de botas, as teorias cada vez mais mirabolantes sobre tudo, os centímetros a mais ou a menos na distância de segurança, a máscara xpto, a viseira, o álcool-gel para desinfectar as mãos ao preço do champagne, o tempo áureo dos serviços de streaming e das compras online, a ficção que já acontecia num mundo em pandemia, o novo normal, as pessoas que nunca mais tínhamos visto, as pessoas que nunca mais veríamos, a palavra zaragatoa metida pelo vocabulário, nariz e boca adentro, a toda a hora, viajar ou não viajar, fazer ou não fazer mais pão, enlouquecer ou ficar cada vez mais lúcido, os passeios higiénicos, os que deixaram a cidade de vez, os golfinhos em Veneza, o acontecimento extraordinário, único numa vida, que tinha feito o impensável, obrigado o mundo a parar e a fazer-nos mudar à força. Nunca mais nada ficaria igual. Nunca mais seríamos os mesmos. A seguir, viriam os loucos anos 20, que isto a história repetia-se. Com um amor novo a isto tudo, reconciliados com o que é essencial na vida, livres do acessório. Que tempos formidáveis de crescimento iam ser!
Bom, talvez nos tenhamos precipitado um pouco.
Cinco anos e uns dias depois, encontramo-nos em estado mais avançado de um processo de desglobalização e ainda a sofrer os efeitos de uma inflação persistente que tiveram os seus começos, precisamente, na pandemia. Enquanto isso, todas as notícias apontam para que não tenhamos aprendido absolutamente nada em matéria de prevenção para o surgimento de novos vírus e doenças potencialmente pandémicas. Não passámos a respeitar mais a natureza, não nos afastámos mais da vida selvagem, não refreámos o consumo. Nem lavar regularmente as mãos nos ficou como hábito, quanto mais qualquer espécie de mudança de posição filosófica em relação ao mundo. Ao contrário de todas as nossas promessas, não passámos a ler mais nem a consumir menos, a usar menos aviões, a andar mais a pé e de bicicleta, a estar mais perto de quem nos quer perto e longe de quem nos quer longe (os dois metros de distância de segurança tinham sido o nosso maior avanço civilizacional desde a invenção da escrita. Que saudades deles de cada vez que uma pessoa se põe na fila para qualquer coisa). O teletrabalho, que vinha para ficar, resiste em bolsas aqui e ali, mas, por todo o mundo, patrões solitários mandaram regressar as tropas a um lugar de onde as possam apreciar. O consumo de energia, combustíveis, e os números do trânsito na cidade, todos em valores record, falam pelo estrondoso resultado das nossas promessas de uma vida nova.
Cinco anos passaram e parece muito sobre um acontecimento que, ao mesmo tempo, soa longínquo. Cinco anos sobre um tempo que parecia nunca mais acabar e, ao mesmo tempo, nunca ter existido, nunca ter passado, quando os dias eram todos iguais e circunscritos às mesmas poucas dezenas de metros quadrados, às mesmas peças de roupa, aos mesmos rituais, aos mesmos poucos, se alguns, rostos, vozes e cheiros. Cinco anos sobre o tempo de todos os paradoxos: tudo ficou como dantes, nada ficou como dantes.
Piorámos. Não foi só o caso de não termos melhorado, nem crescido, nem evoluído, nem apurado, nem amadurecido. Retrocedemos, não pela primeira vez na História, mas certamente por uma das poucas. Tornámo-nos mais egoístas, mais desconfiados, mais descrentes. Pela primeira vez no tempo das nossas vidas sofisticadas, total ou quase totalmente vividas em civilização, democracia, estado de direito, percebemos que o estado, as autoridades sanitárias, académicas, policiais, todo o sistema político-económico, pode, afinal, falhar. E que, se isso acontecer, voltamos ao tempo da selva e cada um tem de tratar de si. De abastecer bem a sua dispensa com todas as latas de atum e rolos de papel higiénico a que consiga deitar a mão, o stock de máscaras e álcool-gel fornecido para várias vidas, as vacinas em dia antes dos outros, sejam velhos ou doentes, ser o primeiro a passar na fila de supermercado, na fila de trânsito, a escapar da cidade se vier aí mais um vírus, um terramoto, um tsunami, os zombies.
Já não nos importa o que é verdade. O que é a verdade? Importa aquilo que nos parece, aquilo a que nos cheira, o nosso instinto, as nossas convicções, as nossas suspeitas – afinal, “eles” também não têm a certeza do que estão a dizer.
A descrença nas instituições não começou com a Covid, mas foi como a comorbilidade mais afectada por ela. Os governos podem enganar-se, as autoridades de saúde, os grandes laboratórios internacionais, os cientistas, os estadistas, quanto mais os jornalistas e os comentadores. Tudo dentro do mesmo saco: o sistema. Apesar de, perante o acontecimento mais disruptivo (rara ocasião de usar a palavra com propriedade) do século, as autoridades e a ciência terem respondido da forma mais extraordinariamente rápida e eficaz de sempre, incluindo a criação de vacinas largamente eficazes e a vacinação em massa do planeta num curtíssimo espaço de tempo, o que ficou foi isto: a desconfiança do próximo, de tudo. Gente que troça de quem tem medo de vírus, mas tem medo de vacinas. Que desconfia de partidos e propõe ditadores. Que põe o mundo a falar de ir a Marte enquanto se deixa morrer de sarampo outra vez.
Os loucos anos 20 foram no século passado. Os do século XXI serão, quando muito, os anos 20 chalupas, irracionais, dementes. Não admira que a guerra esteja às portas.