Pela falta de explicações, a estranheza converteu-se em dúvidas. Pelo excesso de manobras, as dúvidas converteram-se em suspeitas. Dispensemos os rodeios: para alguém que diz nada ter a esconder, o primeiro-ministro comportou-se sempre como se tivesse. Primeiro, recusou dar esclarecimentos; depois, preferiu o risco de eleições a sujeitar-se a um inquérito.
Perante tudo isto, não percebo os lamentos sobre as novas eleições. Qual a vantagem de o país ser governado por um primeiro-ministro que já não justifica confiança, e que, para se proteger, não hesitou em comprometer os seus ministros e o seu partido? Que autoridade poderia ter um governo destes? Qual a sua utilidade? Dizem que o país e o mundo estão num momento crítico. Pois estão. Mas é precisamente por isso que, através do voto, devemos procurar restituir credibilidade à governação.
Eis para que podem servir as eleições. Para dar a Montenegro o que ele perdeu, nunca servirão. Admitamos que as “ganha”, no sentido em que, graças à dispersão de votos entre os partidos, fica à frente dos outros concorrentes. As suspeitas acabam? Deixaremos de ter o direito de duvidar e de questionar? Não, as eleições não são uma máquina de lavar. O Partido Socialista já prometeu um inquérito no próximo parlamento. Enquanto Luís Montenegro for primeiro-ministro, só se falará de avenças em Portugal. Luís Montenegro tornou-se, por sua opção, o disco riscado da política portuguesa.
Em pouco mais de um ano, dois governos caíram por suspeitas graves sobre a conduta do primeiro-ministro. Ora, essas suspeitas não resultaram de casos sem relação entre si. Os incidentes não são obviamente iguais, mas ambas as situações derivam do mesmo problema: a maneira como a classe política da actual democracia usa um Estado hipertrofiado para exercer um poder muito pouco democrático e extrair rendas em proveito pessoal. O que transparece nas operações Marquês, Tutti Frutti, Influencer e agora neste caso de Luís Montenegro não é a idiossincrasia desta ou daquela personagem, mas um “sistema”. É talvez mais claro agora que as reformas em Portugal, isto é, a liberalização da economia e a reestruturação do Estado e dos serviços públicos, não são apenas uma questão de equilíbrio e de eficiência, mas uma questão de democracia e de ética. O regime nunca deixará de sujar-se enquanto os políticos forem tentados a tirar partido das “influências” que o estatismo lhes dá. É essa, neste momento, a principal fonte da instabilidade política em Portugal.
A esse respeito, foi providencial a estratégia de Luís Montenegro. A actual direcção do PSD, à imitação dos governos socialistas, investiu tudo em clientelizar eleitores. Por isso, desprezou as possibilidades da grande maioria de direita de 10 de Março de 2024. Pelo que sabemos agora sobre o comportamento do primeiro-ministro, ainda bem que o fez. Se Luís Montenegro tivesse formado a maioria reformista que muitos lhe pediram, teria sido agora o reformismo a ficar manchado e comprometido. Isso, sim, teria sido trágico. Abençoadas “linhas vermelhas”. Abençoado “não é não”. Assim, a vergonha ficou confinada a uma direcção partidária, e àqueles que agora lhe dão cobertura. Afinal era mesmo preciso uma cerca sanitária, só que o risco da contaminação não estava onde os seus proponentes diziam que estava.
Posto isto, não temos o direito de nos lamentar à maneira do fado. Vivemos em democracia. A democracia é um bem em si. Mas tem também as suas utilidades. Uma delas é dar aos cidadãos um meio de afastar do poder os maus políticos. As próximas eleições devem servir para isso – para um exercício de higiene democrática.