A vontade já antes manifestada por Trump e reafirmada no seu discurso de tomada de posse, a 20 de Janeiro, de que o grande golfo atlântico que vai da península da Flórida à do Iucatão deixe de se chamar Golfo do México para passar a designar-se por Golfo da América, insere-se no seu propósito — e no seu lema — de tornar o país novamente dominador (Make America Great Again). Trump não é um homem intelectualmente elaborado nem tem cuidados de diplomata, ainda que seja muito arguto, como é típico do bom homem de negócios, e os seus objectivos não são difíceis de perceber, nem as suas frases complicadas de interpretar. O que pretende com essa alteração da designação é assinalar que naquele espaço geográfico e à escala mundial, os Estados Unidos são dominantes e politicamente mais importantes — ou geograficamente mais extensos naquele golfo — do que o México. Não o seriam antes da anexação do Texas, mas desde meados do século XIX que assim é. Mais. Trump pretende, através de medidas deste género, promover o orgulho nacional e que ele seja repercutido nos mapas, ensinado nas escolas, referido nas conversas e relatórios, e por aí fora. No mesmo sentido anunciou, também, que mudaria o nome da montanha mais alta da América do Norte, de Monte Denali — nome que lhe foi atribuído nos tempos da administração de Barack Obama — para sua anterior designação: Monte McKinley. E porquê nova mudança? Pela mesmíssima razão da alteração do nome do golfo, isto é, para homenagear “a grandeza americana”. Trump não esconde que pretende elevar a posição dos EUA na cena mundial e declara que, com a sua chegada à Casa Branca, “o declínio da América acabou”.

Estes propósitos do novo presidente norte-americano provocaram uma enxurrada de comentários jocosos da esquerda, tanto a nível local como internacional. Hillary Clinton, presente na cerimónia de tomada de posse, foi mesmo ao ponto de rir abertamente quando Trump os anunciou e o seu riso trocista correu mundo na imprensa, nas televisões, nas redes sociais.

Mas a esquerda faz mal em rir-se por duas razões. Em primeiro lugar porque as designações geográficas têm uma história, o que significa que variaram ao longo do tempo. Às vezes são apenas pequenas alterações ligadas à fonética e à designação que certas regiões têm em diferentes línguas — Samatra ou Sumatra, por exemplo. Outras vezes são alterações mais profundas ligadas à história política dos lugares e, aqui na Europa, os séculos que vão do fim do Império Romano até ao fim da Alta Idade Média, são um extenso mostruário disso mesmo. Assim, a Armórica dos romanos, para onde, no século V, fugiram muitos britânicos (habitantes da Britânia), passou a chamar-se Bretanha. A Britânia, invadida pelos anglos, passou a ser a Angleterre ou, em português, Inglaterra; a Lombardia, no norte de Itália, adquiriu esse nome depois de as suas planícies terem sido invadidas e ocupadas pelos Lombardos, um povo germânico. A Gália romana passou a chamar-se França porque aí se fixaram os Francos, outro povo germânico. A Normandia passou a desinar-se assim depois de ser sido assolada e concedida aos vikings ou north men, os homens do norte.

Esta história poderia sobrecarregar-se de centenas de exemplos, mas o que é importante reter é que as designações dos espaços, das regiões, dos elementos da geografia física, como sejam montanhas ou rios, mudam com o tempo e com os acontecimentos políticos ou militares. Às vezes mudam de forma lenta e progressiva, pois certas designações vão caindo em desuso e sendo substituídas por outras sem que isso seja vontade expressa de ninguém. Em Portugal, por exemplo, já não se designa por Costa da Mina uma parte da Golfo da Guiné, mas era dessa forma que a ela se referiam até ao século XIX. Outras vezes as designações mudam por decreto ou decisão real, como já exemplifiquei acima ao referir que Barack Obama decidiu mudar o nome de um monte, ou como, no século XV, D. João II mudou o nome de Cabo das Tormentas passando a chamar-lhe Cabo da Boa Esperança. A vontade política pode ir ao ponto de alterar referenciaís muito estáveis como, por exemplo, o calendário, como aconteceu com o advento do islão ou com a república jacobina durante a Revolução Francesa.

Eu não estou, com estas considerações, a defender a medida de Trump. Para mim aquele golfo é e continuará a ser o Golfo do México. O que quero é dizer que a esquerda faz mal em rir-se das políticas de denominação geográfica de Trump por esta e por uma segunda e mais importante razão — e essa segunda razão é mesmo o principal ponto que eu quero sublinhar neste artigo. É que estas pessoas de esquerda que agora riem e ridicularizam a decisão de renomear aquele golfo, são as mesmas que promovem e/ou aplaudem, para fins tão políticos como os de Trump — ainda que menos frontais, menos assumidos, que os dele —, a alteração politicamente correcta ou woke, como preferirem, da nossa linguagem corrente. De facto, a Hillary Clinton que ri e o número infindo dos que se irmanam no seu riso, são as mesmas pessoas que querem que, no dia-a-dia ou numa obra literária, se use linguagem inclusiva; as mesmas que exigem que em vez de “escravo” se escreva e diga “pessoa escravizada”; as que querem que os filósofos brancos, isto é, pensadores como Descartes ou Kant, sejam substituídos, nos curricula universitários, por filósofos asiáticos e africanos; as que reivindicam a destruição ou substituição de estátuas e símbolos; etc.

Ou seja, sem que se dê conta disso, ao tentar ridicularizar Trump e outros “deploráveis”, a esquerda da choraminguice e dos discursinhos em punhos de renda está a ridicularizar-se a si mesma e a provar da sua própria medicina. De facto, esses woke partem do princípio de que a língua e as representações moldam e transformam a realidade, e acreditam, portanto, que desde que se mudem designações, símbolos e imagens, conseguir-se-á mudar, a prazo, essa realidade. O método transformador dos woke não conhece, aliás, limites cronológicos e eles tê-no aplicado retroactivamente, modificando denominações antigas — numa obra literária, por exemplo — para melhor “ensinar” e “transformar” o presente. Ou seja, tentam mudar as sociedades a partir de dentro, seguindo a via suave e paulatina da linguagem e do ensino. Tem sido essa a sua medicina e não deixa de ser irónico que, agora, Trump lhes dê a provar o mesmo remédio às colheres. Faço votos de que continuem a prová-lo na vaga esperança — a esperança é sempre a última coisa a morrer — de que parte desses woke consigam finalmente ver-se ao espelho e dar-se conta do ponto a que é aberrante o wokismo que têm andado a promover.

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