Recordei-me, num dia destes, dum anúncio (fantástico!) da Dove. Passava-se numa sala com um ar industrial. Ampla. E vazia. O cenário resumia-se a duas cadeiras, separadas por um pano grande, branco. E um cavalete. De um lado, estava um desenhador com experiência de construir retratos-robô, a partir das descrições dos testemunhos que lhe chegam. Do outro, uma mulher, que se sentava e lhe respondia a perguntas sobre as suas características faciais mais marcantes. Um e outro não se viam. E mantinham uma distância quase asséptica entre si. De seguida, uma outra mulher, que fazia parte do painel seleccionado para este momento, sentava-se e, com o mesmo método, descrevia as características faciais da sua antecessora, naquele contexto. As mulheres que participavam nessa “experiência” sucediam-se. E, a determinada altura, expuseram-se os dois “retratos” de cada mulher, lado a lado. Aquele que tinha a ver com a descrição que aquelas mulheres, uma a uma, tinham feito de si próprias. E o segundo, resultante do olhar de uma outra mulher, que mal a conhecia por fora. Todos os retratos construídos pela descrição que cada mulher fez de si própria eram mais “feios” que os outros, que tinham sido feitos através da sua descrição a partir de testemunhos de quem mal a conhecia. Vistos pelos nossos olhos, essa experiência sugere que nos “vemos” como mais “feios” do que, realmente, somos. O que este anúncio da Dove talvez queira dizer é que andaremos demasiado distraídos para a nossa beleza “normal”. Ou “real”, simplesmente. Mas que não chega captarmos a atenção do seu olhar quando nos tornamos mais atraentes para os outros. Precisamos que eles a nomeiem para que ela “desperte” para nós.
Mas estamos estamos só a considerar a beleza física. Construída através de um olhar que oscila entre a imagem que temos de nós e o que idealizamos sobre aquilo que somos, e o olhar dos outros sobre ela. Saltemos, agora, para a beleza interior. E, também aqui, receio que o olhar que temos sobre nós próprios seja – ele, também – austero. E nos leve a desvalorizar o que temos de bonito. Mais do que seria de supor. Sem nunca o dizer, o anúncio da Dove deixou no ar que nunca somos bonitos sozinhos. Por outras palavras, a forma como nos distraímos da beleza real não nos torna bonitos. E o modo como imaginamos que o melhor que os outros podem trazer à nossa beleza seja repararem, unicamente, nela, sem nos ajudarem a discernir o que nos torna belos, leva a que desperdicemos a beleza que, sem eles, se torna obscurecida até para os nossos olhos.
Entretanto, numa outra campanha muito recente, a Dove chama a atenção para a forma como as redes sociais trazem conteúdos tóxicos sobre a beleza. Sobretudo aos adolescentes, que serão mais permeáveis a isso. A diferença entre as redes sociais e a publicidade de antigamente é que as redes trazem experiências imersivas sobre exemplos de “beleza”, cheias de filtros. Exemplos de pessoas “normais”. Aparentemente, “iguais” aos adolescentes. E tão próximos deles, que os adolescentes – que vivem as redes como se elas fossem “a realidade” e não tanto o resultado de um algoritmo para o qual os seus likes contribuam – comparados com esses “exemplos”, acabam a sentir-se feios. Sempre mais feios. Porque a distância entre aquilo que eles passam, depois disso, a idealizar que é a beleza e aquilo que eles são aumenta. Mais feios, ainda, do que eles “seriam” se fizessem só um retrato-robot a partir das descrições do seu rosto.
Não será hora de nos darmos todos conta de onde vem a beleza? Não será de perceber que eles não só vivem distraídos da sua beleza como cercados por ideais de beleza, como se as redes sociais fossem uma espécie de “droga leve” que os faz sentirem-se, todos os dias, um bocadinho mais feios, diante da nossa passividade?…