No fim do ano de 2021, depois de inúmeras trapalhadas processuais e políticas que conduziram à substituição do coordenador da task force do plano de vacinação pelo então desconhecido vice-almirante Gouveia e Melo, e já consagrado o sucesso logístico da vacinação, a imprensa começava a vislumbrar no horizonte uma criação. É certo que o processo de vacinação conheceu eficácia a partir do momento em que o vice-almirante surgiu em cena, de camuflado, como numa missão militar, para gáudio de uma turba ansiosa por um chefe, mas a sua consagração também se deveu, e muito, a dois factores: ao desastre absoluto que foi a liderança da task force por comissários políticos, e ao facto de, num país particularmente avesso à liberdade, se terem anunciado proibições infinitas a quem não se dirigisse pacatamente a uma seringa. Seja como for, é inegável o sucesso do seu trabalho. Questionável foi o salto lógico que se seguiu.

A 24 de Dezembro de 2021, escrevia-se no Diário de Notícias: «Henrique Gouveia e Melo deu provas de saber fazer acontecer. O vice-almirante regista uma carreira bem-sucedida atingindo o auge do reconhecimento enquanto coordenador da task force da vacinação contra a covid-19. É por isso natural que muitos o questionem sobre o seu futuro, carreira, ambição política.»

É um pulo de gigante. Fulano deu provas de saber trabalhar? Pergunte-se qual é a sua ambição política!, escrevia-se, supunha-se, meses depois de, diariamente, as televisões enxamearem o espaço público com o camuflado e a autoridade do vice-almirante, aquele desconhecido que nos pôs a todos na linha e os políticos na ordem. Gouveia e Melo não mencionara qualquer ambição política. Mas os mais inquietos espíritos da pátria viram na competência profissional um astro cintilante, como quem vê um oásis no deserto. Naquela altura, Gouveia e Melo estava a um passo de se tornar Chefe de Estado Maior da Armada (CEMA), aquela que seria a sua ambição mais conhecida. Mas talvez fosse pouco.

O pontapé de saída não foi dado pelo Diário de Notícias. No início daquele mês de Dezembro de 2021, Gouveia e Melo deu uma entrevista à SIC, que por sua vez já lhe tinha dado um Globo de Ouro, em que afirmou: «Sou um militar, se entenderem que tenho alguma coisa para dar…». Na véspera da notícia do DN, o Expresso publicara uma entrevista ao vice-almirante, chamando-lhe «uma espécie de herói nacional», já depois de o eleger a Figura Nacional do ano de 2021. Nesta última entrevista, os jornalistas recordam a frase dita na SIC, clarificando que Gouveia e Melo se estaria a referir a ser CEMA, mas que também tinha afirmado que se não fosse esse o caminho, «teria outras formas de se realizar». O vice-almirante esclareceu, dizendo que não colocava fora de hipótese participar na sociedade, fosse de que forma fosse, embora dissesse que «não me apetece nada ser Presidente da República.» E mencionava exemplos de como existem outras formas de realizar alguma participação cívica, como lançar um movimento cívico.

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Gouveia e Melo tornara-se, entretanto, CEMA. Podia o espaço mediático ter feito com ele o mesmo que fez com todos os outros CEMA. Não fez. Em Julho de 2022, o Público entrevistava-o e insistia no tema das presidenciais. Gouveia e Melo esclarecia, afirmando que a sua única ambição «é ser militar e desenvolver a minha actividade militar. Muita gente fala sobre muita coisa. O que é que lhe posso dizer? Continuem a falar, se quiserem. Eu não tenho nada a ver com isso. Sou militar, estou a fazer uma missão militar, estou muito satisfeito com o que estou a fazer.» Sobre o futuro? «Logo se vê o que acontece. Mas não estou preocupado com isso, estou concentrado na minha missão. E gostaria que me deixassem concentrar na minha missão e não me fizessem a mesma pergunta 300 vezes», respondia.

Em Abril de 2024, em entrevista ao Nascer do Sol, voltava a responder à mesma pergunta: «Neste momento estou focado 110% na Marinha.» De lá para cá, é o que se sabe. As sondagens são publicadas e pagas em catadupa, e em todas elas «o Almirante» é oferecido como o inequívoco, o incontornável, o inevitável, o homem sem opositor válido, aquele que tudo e todos derrota à primeira e à segunda volta e a quantas mais voltas houvesse. Em Novembro foi notícia que Gouveia e Melo tinha já informado o ministro da Defesa da sua indisponibilidade para renovar o mandato à frente da Marinha. A SIC anunciou que a sua candidatura presidencial seria anunciada em Março de 2025, altura em que passaria à reserva. O almirante antecipou a entrada na reserva. E eis todos os astros alinhados: parece já inevitável que daqui por um ano teremos Gouveia e Melo em Belém. E, ainda que mal pergunte, até porque o próprio continua semi-reservado ao silêncio e surpresas acontecem: quem é que o está a conduzir até lá?

Gouveia e Melo já se colocou politicamente. É um homem do centro pragmático, como a esmagadora maioria dos portugueses. Tem autoridade e é reconhecido por ter desempenhado com competência o seu trabalho. Os seus tiques de pequeno tiranete ficaram conhecidos por alturas da pandemia, é certo, mas não se esperaria que um país ansioso por ser pastoreado não apreciasse um bom cajado. Em Portugal, parece ter tudo para ser um bom pastor. Belém fica logo ao lado. Se alguém oriundo da classe política lhe quiser sobreviver, terá de mostrar ser mais do que aparenta ser. Terá de ser suprapartidário e provar que saberá melhor do que Gouveia e Melo o que vai fazer se for eleito Presidente da República. E, ainda assim, talvez não baste. Boa parte do país, eleitores de praticamente todos os partidos e abstencionistas, têm em Gouveia e Melo a promessa da salvação, a crença num homem que já lhes mostrou que o sol quando nasce é mesmo para todos e não para os mesmos de sempre, para a oligarquia, para aquilo a que a vox populi chama «a tralha». Parece ser ele, mais do que qualquer outro, a realização de mais um passo no destino que dita que em Portugal os regimes não duram mais de cinquenta anos, desta feita em modo de revolução gradual e não violenta. É difícil combater isto, porque a imagem é aliciante e auspiciosa. Os mesmos que o levam ao altar de Belém são, porventura, os mesmos que o acusam, ou acusarão de populismo. O almirante não chegou aqui sozinho, nem chegará mais além, se de facto o quiser, desacompanhado. Resta saber se não se arrependem.

Lembrei-me, por estes dias, da curiosa história do então jovem rei da Sérvia, Alexandre Obrenovic, que, em 1893, convocou o Governo para um banquete e às tantas se ergueu a meio do jantar. Os políticos levantaram-se, julgando tratar-se de um brinde. E viram a tropa entrar pelo salão, a mando do rei, prendendo-os a todos. O leitor interpretará, com a adequação devida à modernidade.