Eis o que constava, até há uns meses: o plano do governo era repetir Cavaco Silva em 1987, arrancar a maioria a um eleitorado irritado com o obstrucionismo das oposições. Havia quem, céptico, notasse diferenças entre o país optimista e próspero de 1987 e o país preocupado e trôpego de 2025. Nada abalava a estratégia governamental. Mas isto era antes. Agora, o paradigma histórico parece outro. Não já Cavaco Silva em 1987, mas José Sócrates em 2009: ganhar as eleições, graças a um eleitorado a quem importa mais um aumento de pensões do que a idoneidade do chefe do governo. Um paradigma de desespero, perante os incidentes que Luís Montenegro, por sua opção, provocou? Acima de tudo, um paradigma coerente com a presente governação.
Este governo atesta duas coisas. A primeira é o trauma do PSD com o domínio do PS. Esse trauma poderia ter levado o PSD a tentar desmontar o “sistema” em cima do qual os socialistas ergueram o seu domínio. Foi o que, perante a bancarrota socrática, Passos Coelho começou a fazer entre 2011 e 2015. A corrente gerência do PSD escolheu outro caminho. Preferiu usar o mesmo “sistema” para alcançar um poder idêntico ao dos socialistas. Tal como o PS, segmentou o eleitorado, mimando pensionistas e funcionários. Tal como o PS, ocupou o Estado e seus arredores, o que não teria mal, se a intenção fosse mudar de procedimentos, e não apenas mudar de inquilinos. Como antes, o efeito é um despesismo que só a pilhagem fiscal não deixa ser imediatamente catastrófico, e que opera como o maior freio à prosperidade do país.
O actual governo ainda continuou o anterior em mais um aspecto: a atitude olímpica de donos do poder, estranhos ao que cá em baixo se possa dizer deles. Que vos lembra a opção desta direcção do PSD, depois de ter feito eleger o ano passado os arguidos do caso Tutti Frutti, de propor agora como candidato um ex-secretário de Estado que se demitiu por “imprudência” há poucos meses? Exactamente: a arrogância que fez António Costa manter no palco, meses e anos a fio, gente sobrecarregada de “casos”, em jeito de desafio ao país. Muito antes da sagração de Miguel Albuquerque na Madeira, já o êxito de Sócrates em 2009 dera esta confiança fidalga aos donos do poder em Portugal. Teria António Costa ganho, se, depois do caso Influencer, se tivesse recandidatado em 2024? Não sabemos. Mas ascendeu ao Conselho Europeu. A oligarquia em Portugal habituou-se a não pagar por nada.
O governo reflecte ainda outra coisa. Em 1980, com Sá Carneiro, em 1985, com Cavaco Silva, ou em 2011, com Passos Coelho, o PSD, com maior ou menor sucesso, governou contra o “sistema”. Com Luís Montenegro, não. E isso não tem só a ver com a personalidade dos líderes: tem a ver com uma transformação do PSD. Durante décadas, o enraizamento local do PSD, sobretudo no norte e nas ilhas, deu-lhe uma base conservadora, que limitava salutarmente a tendência de uma parte dos dirigentes lisboetas para ceder à esquerda. Nos últimos anos, tudo mudou. O enraizamento local já não impõe ao PSD o conservadorismo dos eleitores, mas a mesquinhez de um aparelho partidário demasiadas vezes reduzido a uma rede de aproveitamento do poder para enriquecimento pessoal, como no caso Tutti Frutti. Essa cultura partidária desenvolveu-se nas autarquias, e transferiu-se agora para a governação nacional, onde se identificou naturalmente com as práticas e as atitudes do PS.
Perante o PS, o PSD representou em tempos, melhor ou pior, outra maneira de governar. Sob esta direcção, é apenas um concorrente dentro do mesmo “sistema”. O voto no PSD muda caras, mas não muda mais nada. Por vezes, mudar caras é suficiente. Mas Portugal está numa situação em que precisa de um pouco mais — e em que até pode ter um pouco mais.