Inverno. Viajo de carro debaixo da chuva torrencial. Vou pensando que não há nada que deteste tanto quanto os estranhos imaginarem que me conhecem. Parece-me má educação. Uma senhora a quem conto que o meu avô emendava os meus poemas, quando eu era pequena, imagina que eu dava erros porque não me sabia expressar em português, por ser uma criança africana. Não a corrijo. Ela está tão contente com a sua conclusão e é tão gentil, que apenas sorrio.

Sigo no comboio em direcção à margem Sul, onze da manhã. A carruagem vai cheia de senhoras negras derreadas. O dia mal começou e elas já regressam dos escritórios, supermercados, centros comerciais, parques de estacionamento, que limparam em Lisboa. Do outro lado do vidro, a paisagem é densa até ao Fogueteiro, e depois torna-se duramente campestre. Elas vêm com a cabeça encostada à janela, dormitam. Algumas têm o cabelo amarrado num lenço ou numa touca, significando que a viagem até Lisboa é provisória, que não contam encontrar ninguém conhecido no caminho, estão quase vestidas para o trabalho doméstico, vêm e vão, cumprem o dever, sem serem vistas. Saem no Pragal, ou mais adiante, em Coina, no Pinhal Novo, na Venda do Alcaide. Onde viverão? Como serão as suas casas?

Num vídeo do Movimento Vida Justa, conheço a história de uma senhora que foi despejada de casa e posta num quarto, numa pensão. Tem três filhos e está grávida do quarto. Segundo conta, se não der prova em breve de ser capaz de arranjar uma casa, pelos seus próprios meios, o que lhe é impossível dado o preço das rendas, a segurança social tira-lhe os filhos.

Inês de Medeiros, presidente da Câmara Municipal de Almada, ao jornal Eco, esta semana: “Almada tem (…) um dos maiores núcleos nacionais [de barracas], e no último ano e meio viu crescer um aglomerado na encosta esquerda do Tejo, a jusante do pilar da Ponte 25 de abril. Um dos reflexos de uma pressão ‘gigantesca’ sobre a habitação.”
Sobre o crescimento do bairro de Penajóia, em Almada, ainda Inês de Medeiros:

“Penajóia há um ano e meio não existia. Basta ir ao Google e vê-se o que existia, umas casinhas de umas pessoas que faziam agricultura, não tem nada a ver. Quando começou Penajóia, a Câmara Municipal fez um primeiro levantamento. Na altura eram cerca de 50 pessoas. Remetemos ao IHRU, avisando. Foi tudo muito rápido. Em poucos meses, houve um primeiro boom de construção. Nós fomos imediatamente lá, fizemos levantamento das pessoas, que estão devidamente identificadas e entregámos ao IHRU, que ficou não apenas de continuar esse levantamento, mas tentar travar aquela construção desenfreada e arranjar soluções. Apesar de tudo, aquilo são terrenos do IHRU, não são da câmara. A questão nem se coloca agora. Como houve uma omissão total durante um ano e meio, aquilo tomou as proporções que tomou.”

Vejo-nos entretidos a tratar da vida: contas, empregos, filhos, planos, balanços. Será que somos adultos, ou crianças à paisana? Costumo entreter-me a imaginar as pessoas que vejo na televisão quando eram pequenas. Vejo-os engravatados, aprumados, cheios de convicção e discursos, mas, olhando bem, parecem meninos na escola a brincar aos senhores. Um dos mistérios da vida é saber como fizemos para crescer e caber na pele adulta. Talvez não seja natural para toda a gente. Caber no fato, na pose, no título. Algumas pessoas são exímias em disfarçar-se de adultos.

Vejo com a imaginação uma das mulheres do comboio a chegar a casa ao meio-dia, com o corpo dorido, cheia de sono. Quer dormir uma sesta, mas não há calor, nem silêncio, nem consolo algum à sua volta. Cozinha para os filhos, chegados da escola, deita-se. A casa é fria e húmida, a comida é pouca. Mais logo, acordará de madrugada e voltará ao centro, de comboio, para novo dia de trabalho. Vive-se tristemente neste país de botões de punho.