1 O poder da tribo
As décadas de 1950 e 1960 do século passado foram ricas em experimentações no domínio da psicologia. Algumas delas, por razões éticas, seriam hoje irrepetíveis, mas uma das mais relevantes continua a ser revisitada: a do psicólogo Ash Salomon que, na década de 1950, procurou testar a nossa suscetibilidade para a conformidade ao grupo. O seu exercício mais popular é aquele em que era pedido aos participantes que identificassem o comprimento da linha da primeira imagem na segunda imagem.
Na verdade, apenas uma pessoa está a ser “experimentada”, uma vez que todos os outros participantes estão em conluio com os investigadores para dar uma resposta errada. A experiência mostrou que mais de um terço das pessoas tendia a modificar a sua resposta – mesmo que visivelmente correta – caso o restante grupo fosse unânime em identificar uma resposta errada. Desde então, a conformidade ao grupo tem sido entendida como uma variante fundamental do nosso comportamento social, sendo particularmente estudada em questões políticas e morais, que fazem subir aquela fasquia.
Esta tendência de conformidade torna-se fácil de compreender se aceitarmos o argumento de Gláucon, apresentado por Platão na República e de que falamos aqui, como mais próximo da realidade: somos seres mais preocupados em parecer morais do que em ser morais. Como Jonathan Haidt tem defendido, evoluímos para nos tornarmos seres morais e somos especialmente moralistas no sentido de reforçar a pertença à tribo que partilha a nossa moralidade: qualquer desvio à norma é entendido como uma violação grave e merecedora de punição e quanto mais forte é a moralidade subjacente ao grupo, mais severa tem de ser a punição.
A nossa dimensão biológica dá força a esta interpretação: a punição do desviante provoca prazer (físico, quimicamente produzido). E é nesse sentido que Nellie Bowles diz, no seu divertido Morning after the revolution,
“na primeira vez que participei conscientemente no cancelamento de alguém, a sensação foi incrível. Ainda me lembro do prazer.”
Também explica por que razão a raiva, a punição e o cancelamento são sobretudo orientados para os membros do nosso grupo. Quando as linhas que separam os grupos estão estabelecidas, podemos atacar o outro lado, tentar silenciá-lo e despromovê-lo – mas sabemos que se trata do nosso adversário. É dentro do grupo que se encontra o inimigo e não podemos admitir desvios: como diz Bowles, e como sabem todos aqueles que estiveram envolvidos na esquerda revolucionária, “os maus entre nós são mais perigosos para o grupo.”
Não é assim surpreendente que aquilo que se tem vindo a designar como wokismo se caracterize não só por comportamentos constantes de sinalização de virtude (é preciso sinalizar aos outros que estamos comprometidos com a moralidade do grupo), como por uma forte cultura de cancelamento (é preciso sinalizar aos outros que estamos comprometidos com o grupo e que, por isso, condenamos rapidamente aqueles que põem em causa a sua moralidade). Como o wokismo tem uma forte dimensão moral, todo esse espetáculo é natural. Ou, como nota Bowles,
“é apenas a condição humana. Sempre fomos assim. Somos macacos. Ficamos superexcitados e irracionais, e os pânicos satânicos tribais vêm e vão, é a nossa natureza. Tudo o resto é o desafio. Liberalismo, tolerância, viver e trabalhar com pessoas de quem discordamos? Isso é que é completamente antinatural.”
2 O esforço liberal
É antinatural, mas é o grande mérito do liberalismo: a tentativa de nos emancipar das nossas condições naturais que dificultam a convivência pacífica. Embora seja uma ficção, o liberalismo tenta criar instituições e princípios que permitam não ficarmos presos às nossas limitações naturais e aos nossos vieses cognitivos. A tragédia do liberalismo não é, assim, o liberalismo – mas o esquecimento de que se trata de um esforço, artificial e difícil, mas frutífero.
Um dos princípios que o liberalismo promoveu para esse esforço foi a defesa da liberdade de expressão. É precisamente porque não somos mentes livres, absolutamente racionais e emancipadas, que se torna mais importante abrir o espaço de expressão: apenas no confronto de ideias se tornam evidentes as nossas limitações. A liberdade de pensamento e de expressão é assim um meio para tentar algo para o qual as nossas mentes não foram feitas: a procura da verdade.
De acordo com Haidt, evoluímos como seres morais e não para nos tornamos cientistas em busca da verdade, pelo que procurar a verdade é um esforço difícil. Nos últimos séculos, traduzimos esse esforço no Ocidente com instituições de ensino e investigação que colocavam como objetivo a procura da verdade: para tal, as universidades modernas promoveriam o esforço, antinatural, de suspender as regras morais e incentivar a discussão e a investigação livres.
Aqui reside a perversidade da ideia de ocupar instituições com os nossos propósitos morais: quando isso acontece, elas deixam de cumprir o seu objetivo e voltam a emaranhar-se na lógica tribal. Foi o que aconteceu, nas últimas décadas, nas universidades norte-americanas, com reflexos sobretudo no mundo anglo-americano. Substituiu-se o esforço liberal de pensamento livre pela procura de uma moralidade específica (nomeadamente, de justiça social) e as instituições académicas começaram a afastar-se, gradualmente e de modos diferentes em diferentes áreas, do seu propósito inicial de procura da verdade.
Não é assim surpreendente que nos campi norte-americanos se tenham popularizado as duas ferramentas para o reforço da moralidade que identificamos: comportamentos constantes de sinalização de virtude e a promoção de uma cultura de cancelamento visando a exclusão de valores morais distintos. Aqueles que as promoveram, defendiam-nas como necessárias para a construção de uma sociedade mais justa e ignoraram todos os avisos.
3 Uma cultura de cancelamento
Sempre que discuti com os meus pares o ataque que estava a ser feito à liberdade académica de pensamento e expressão, ficava surpreendida com o facto de eles não serem sensíveis a um argumento que me parecia totalmente sensato: as regras devem ser feitas a pensar que um dia não estaremos no poder. Trata-se, na verdade, de uma ideia simples: quando defendemos limitações de expressão e práticas de cancelamento, estamos a pôr-nos a jeito de sofrer essas mesmas medidas quando o outro lado está no poder.
Continuo a achar que se trata de um argumento sensato (e, talvez, o melhor argumento para a garantia da liberdade de expressão), mas Haidt permite compreender por que razão o argumento não produzia efeitos: subjugados a uma lógica de moralidade tribal, não eram capazes de pensar fora dela. A sua arrogância moral, misturada com muita arrogância epistemológica, não lhes permitia compreender que as mesmas armas (ou do mesmo tipo) que estavam tão dispostos a usar e a justificar moralmente seriam usadas pelo outro lado, igualmente convicto da sua moralidade.
Após os primeiros meses de 2025 e de mais uma vitória de Trump que foram incapazes de antecipar e, sequer, compreender, é caso para perguntar: não queriam uma cultura de cancelamento? Eis a cultura de cancelamento.
Ela está agora, e como era previsível, a ser usada pelo outro lado. E é este o problema das lutas culturais e da politização de todos os domínios da vida: tudo se torna palco de luta moral e política.
Não deixa de ser surpreendente que tantas pessoas tenham ignorado os avisos de que proteger a liberdade de uma opinião contrária à nossa é, acima de tudo, proteger a nossa liberdade de dizer algo contrário ao poder instalado; que tenham ignorado os avisos de que ocupar instituições públicas, como universidades e serviços públicos, com a sua moralidade levaria a que, invertida a situação de poder, eles fossem alvo de ocupação por parte da moralidade oposta; que o ataque à ciência e às ideias que eles consideravam inaceitáveis teria, como contrarresposta, um ataque à ciência e às ideias que o outro lado acha inaceitáveis.
E não deixa de ser surpreendente que tantas pessoas se escandalizem com o facto de a atual administração norte-americana querer expulsar não-nacionais que professaram “ideias inaceitáveis”, querer controlar a entrada de académicos que pensam “coisas erradas” e querer “reocupar as universidades que usam verbas do estado”. Tudo coisas obviamente negativas, mas não imprevisíveis. Não queriam uma cultura de cancelamento? Eis a cultura de cancelamento.
PS: Porque não é possível compreender os nossos tempos, e sobretudo as medidas da administração Trump, sem compreender o que foi e o que é o wokismo, vou lecionar um curso on-line sobre a sua teoria e a sua prática. Podem encontrar mais informações em pensamentolento.com.