Sinceramente, acho que sou o pastor protestante português mais injustamente bem tratado por católicos. Ainda agora, por conta das Jornadas da Juventude, recebi convites generosos. Aceitei os que em consciência senti que podia aceitar, e também houve espaço para recusar os que em consciência não podia. Mas em todos eles, sobressai essa prontidão e abertura com que a Igreja Romana consegue tratar um cismático como eu. O texto de hoje, sendo protestante qb, precisa de começar por um “obrigado” a estes amigos. Quero, portanto, falar-vos dessa pronta jovialidade católica, que nos assiste em 2023, tão investidamente apaixonada pela universalidade. A Igreja do Papa quer hoje ser o coração palpitante não apenas do cristianismo, mas do mundo inteiro. Logo, a festa destas mesmas Jornadas da Juventude não pode ser apenas católica; tem de ser de todos.

Basta que o leitor seja um pouco menos ignorante acerca dos assuntos da religião que rapidamente me dirá: Tiago, não é possível um católico não ser obcecado pela universalidade quando a palavra católico quer precisamente dizer universal. Ao que responderei: nem mais. Do mesmo modo como um mísero baptista como eu só pensa em baptizar (e baptizar mesmo, mergulhando a pessoa crescida toda dentro de água), um católico só pensa em universalizar. Até aí, tudo bem. Acresce, todavia, o peso da história. O modo como católicos pensam na qualidade que querem defender de ser universais não foi sempre este.

Para uma simplificação que torne este texto minimamente coerente (apesar de não acreditar tanto assim em textos minimamente coerentes), falaria no dilema católico da universalidade sobretudo nos últimos duzentos anos. Para oferecer dois postes à baliza onde queremos acertar algum golo nesta crónica, mencionaria o Concílio Vaticano Primeiro e o Concílio Vaticano Segundo. O Vaticano I aconteceu entre 1869 e 1870 e o Concílio Vaticano II em 1961. É tese de uns quantos, eu incluído, que, entre o Primeiro Concílio e o Segundo, a Igreja Católica Romana, naturalmente vidrada na questão da universalidade que lhe está no nome, passou do oito para o oitenta.

O oito foi no Vaticano I a Igreja Católica oferecer-se como o antídoto à época moderna. Continuando a resumir muito, os católicos viam o mundo a ir de mal a pior e diziam: nós somos o antídoto para este mundo que vai de mal a pior. O oitenta foi no Vaticano II a Igreja Católica oferecer-se como a alma da época moderna. Continuando a resumir muito, os católicos passaram a ver o mundo a ir de bem a melhor e a Igreja a ficar para trás e passaram a dizer: nós somos a verdadeira alma deste mundo que vai de bem a melhor. Na obsessão católica pela universalidade, ser contra o mundo ou querer ser o mundo são faces da mesma moeda. Os católicos não sabem existir sem pensar constantemente no mundo.

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Nós, protestantes, somos outra história. Não é que não pensemos no mundo, até porque para grande parte de nós o primeiro verso que decoramos na Bíblia é precisamente o de João 3:16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu filho unigénito para que todo que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna”. A questão é que os protestantes, quando pensam no mundo, não o externalizam tanto assim. Ou seja, o mundo existe dentro de nós mesmos, sobretudo no pecado que encontramos cá dentro. Logo, a universalidade dos protestantes não é marcada primeiro pelo exterior mas pelo interior. É por isso que nós, protestantes, somos razoavelmente chanfrados ainda antes de sairmos à rua (não é o mal dos outros que nos choca, é o nosso). O mundo para o protestante não começa fora, começa dentro.

O que safa os protestantes da obsessão pela universalidade que os católicos têm é a sua morbidez. Como nós, protestantes, começamos por encontrar o pior que o mundo tem cá dentro, não pensamos tanto em termos de compromisso com ele. Salvar o mundo? Nem por isso. O melhor compromisso que se pode ter com o mundo é, para o protestante, salvar-se do Inferno. De resto, o mundo soa até como uma abstracção pouquíssimo sedutora. Na dicotomia entre o mundo e o indivíduo, marcam-nos as palavras de Jesus em Marcos 8:36: “que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” O mundo para nós é o que se ganha para se perder a alma. O mundo ser ganho irremediavelmente nos soa à nossa alma se perder. Nessa medida, um protestante receia a universalidade na mesma proporção que um católico não pensa noutra coisa. As palavras são as mesmas, os significados opostos.

Claro que os menos ignorantes de alguma história religiosa sabem que, na prática, não foi a Reforma Protestante que inventou estes dilemas. Estas eram discussões que dividiam a Igreja Medieval e que, de certo modo, Roma posteriormente extirpou de dentro de si para poder demarcar-se dos Reformadores. Só para dar um exemplo anterior mas historicamente não tão remoto assim de Lutero, veja-se a rivalidade entre Pedro Abelardo e Bernardo de Claraval, no Século XII. O primeiro era a Igreja em progresso, toda feitinha para ser a alma do mundo, e o segundo era o antídoto para ele, nas tintas para as glórias mundanas. Esta tendência de ser do contra em grande parte transferiu-se para o protestantismo mas continua a encontrar-se dentro das duas tradições, mesmo que sem tanto espalhafato (tanto há anti-modernos no catolicismo como progressistas no protestantismo).

Estas Jornadas da Juventude ilustram, com todos os extras do nervosismo adolescente típico dos nossos tempos, a obsessão católica pela universalidade. Aos católicos não basta hoje terem uma festa sua: de tão engatilhados que estão para serem a alma oficial do mundo, a festa tem de ser de todos. Costumo dizer, adaptando uma frase dos irmãos Marx, que uma das coisas que sempre me afastou do catolicismo é a sua prontidão para me aceitarem como membro. A ironia é que a prontidão que os católicos têm para querer ser a Igreja de todos (diríamos a Igreja hiper-católica) não vem de um delírio de grandeza. Em tantas falhas que aponto ao catolicismo, não encontro nele um excesso de auto-estima. A obsessão do catolicismo pela universalidade é uma demonstração inadvertida de insegurança. O catolicismo só descobre o mundo quando o afirma, de tão forte que guinou de antídoto para alma dele. É uma religião que tem vindo a perder o entendimento da vida que existe num não.

Que as minhas festas não precisem de arrastar todos—eis talvez um gesto de verdadeira caridade cristã e um esboço de alguma universalidade alternativa. Boas Jornadas aos meus amigos católicos!

P.S. Depois de ter escrito este texto, vi que um rapaz que é pago para artisticamente juntar lixo em paredes pespegou uma passadeira de notas no altar feito para o Papa para assim criticar a suposta ganância da Igreja Católica num evento como as Jornadas da Juventude. Como calculam, apeteceu-me converter-me ao catolicismo imediatamente. Continua a surpreender-me que haja quem pense que uma religião para ser séria tem de ser incorruptível. Se fôssemos incorruptíveis, a religião não era precisa para nada. Espero que a Igreja Católica, ao envolver mais de um milhão de pessoas num mega-evento destes, faça mesmo algum guito — de outra forma, andariam a brincar com coisas sérias. Pior do que igrejas que hipoteticamente roubam dinheiro às pessoas são pessoas que não passam por essa tentação. Os puros é que me metem medo, não os corruptíveis.