Uma semana passou e não creio que se tivesse assinalado com propriedade os momentos intelectualmente superiores com que, franqueando os territórios inóspitos da lógica proposicional, o PS brindou o nosso serão do passado Domingo. Instado a justificar a hecatombe que o partido acabara de sofrer nas eleições da Madeira e a explicar se dela poderiam ser retiradas leituras nacionais, João Torres (quem mais?), nédio e cevado a pústulas de sapiência, espremendo-as, esguichou assim: “o PS não confunde eleições” e “cada eleição é uma eleição”, pois têm uma “natureza distinta”. “Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa” – pareceu subitamente ecoar pelos corredores do Rato, embora os rudimentos hortofrutícolas do jovem infante não logrem chegar muito para lá de um tubérculo.

Chega a ser comovente assistir em directo a uma tal alteração de paradigma epistemológico: o modo como o petiz, com a graciosidade de um mamute a quem solicitaram um demi plié, é capaz de, numa frase só, refundar os conceitos de definição e distinção é verdadeiramente admirável. As tabelas de verdade nada mais serão, de ora em diante, senão resquícios de exóticos tabuleiros de gamão e não penso que séculos e séculos de literatura hexameral – cujos autores procuraram explicar teologicamente a obra da criação, definindo a ação de Deus como opus distinctionis – consigam alguma vez recuperar do ingente embate com este colosso de argúcia verbal.

Segundo Anaxágoras, a distinção e separação das coisas arrancadas ao caos primordial constituiu a própria emergência do espírito. Herdeiro dessa intuição, o Cristianismo interpretou o Logos, a Palavra, enquanto instrumento hermenêutico de discernimento de tudo quanto nos envolve. Não é por acaso, aliás, que muitos verbos cognitivos signifiquem etimologicamente também cindir (discernir, precisamente), pois pensar é separar.

Para Descartes, a distinção era essencialmente uma qualidade da percepção – distinto seria o conhecimento de tal modo preciso e diferente que nada contivesse senão o que em si mesmo é evidente. Leibniz recebe e aprofunda essa teoria cartesiana: uma ideia é clara quando permite reconhecer e identificar o seu objecto; distinta, quando fornece a definição que permite discernir as suas características peculiares. Kant por sua vez, com maior precisão, circunscreve: a consciência das representações, se suficiente para destrinçar um objecto de outro, diz-se clara; se iluminadora da composição das representações, chama-se distinção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Convidado para os ombros de tais gigantes, Torres lança um olhar de desdém para cumeeiras tão indignas do alcance da sua mirada e, munido do verbo nacarado que lhe intumesce a jugular, que faz ele? Eleva as categorias lógico-ontológicas a um outro nível: “estes resultados eleitorais [i.e., uma monumental tareia em que o PS perdeu, em todas as freguesias, praticamente metade dos votos e dos mandatos] não determinam o compromisso com as autonomias regionais» – postulado que, em boca plebeia, equivaleria, argumentativamente falando, a fazer depender o início da Primavera da cotação da acelga no Mercado de Estremoz.

Não assim para o aristocrático ósculo verbal de Torres: respaldado em semestres e semestres de Jogo do Galo nas aulas do Anfiteatro I, o moço suspeita que qualquer distinção formal se encontra intrinsecamente fundada sendo, por isso mesmo, anterior e independente de qualquer intervenção da inteligência. Descurou, contudo, aquela advertência que fez o autor dessa proposição – João Duns Escoto – quanto ao único enunciado a que não se aplicaria – um que fosse absurdo.

Há uns 230 anos, em Praga, um outro João – Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart – desenhou no puro ar arestas e volutas de distinção. Enquanto terminava Die Zauberflöte, comissionaram-lhe una opera seria – cómica lítotes cujo significado se esgota na exigência de uma intriga rebuscada, personagens marmóreas e libretto italiano – que terminou em 18 dias, a tempo da coroação de Leopoldo II. Mas que coisa seria afinal una opera seria? Não o seriam o Idomeneo ou o Mitridate? Que coisa define uma coisa e onde ficam os limites da sua distinção?

A linguagem é rebuscada, a história poliédrica e as personagens parecem cumprir, como nas velhas aulas de geometria, o papel de cada uma das superfícies verticais paralelas ao plano do quadro em que figuram as diversas partes de uma composição – La Clemenza di Tito não é, talvez por isso, a mais representada das suas obras mas é aquela que, diante da apneia da misericórdia, nos ensina a respirar com zelo e competência: não é senão depois de bem entrado o Acto I que percebemos que Vitélia, filha do Imperador deposto, quer assassinar o actual Imperador, Tito, uma vez que, não respondendo ao seu amor, escolheu em seu lugar Berenice para sua esposa. Para cumprir os seus intentos, alicia um pobre admirador, Sesto, que apaixonadamente e em silêncio lhe devotou o espírito e que por amor chama a si a responsabilidade da conjura.

Enredados nas equívocas seduções dos Fados, reencontramos todos os conspiradores na última cena do último acto, agrilhoados na arena, prontos para a execução. Na última ária (Ma che giorno è mai questo?), o imperador recorda-nos que, ao contrário do mantra socialista, a compaixão não substitui a justiça, mas é a sua origem: muito acima do desencanto, da mágoa, da lassidão ou da derrota, Mozart, pela boca do imperador, ergue a bizarra clemência do título, invocando a mais poética das razões – sia noto a Roma, ch’io son lo stesso, e ch’io tutto so, tutti assolvo, e tutto oblio. Eu sou aquilo que permanece quando tudo em volta desaba.

É essa a lei da misericórdia, que o Tito histórico dificilmente poderia ter conhecido: para que tudo permaneça, é necessário que tudo mude, pois o perdão, longe do esquecimento lamechas relativamente a um outro, é um começo absoluto pelo qual o homem se consente a transitoriedade, a indignidade da mesquinhez, a falha por onde entra toda a luz. E que opera poderia ser mais seria do que essa?

É pena que, à lógica da rosa, Torres prefira, grelada e tenebrosa, a da batata.