O mundo dos livros talvez se assemelhe à floresta do Sonho de uma Noite de Verão. Chesterton considerava-a a obra-prima de Shakespeare – a mais ousada e alegre, a mais perturbadora e profunda. Nela, dois casais de jovens escondem-se na floresta para viverem o seu amor. É uma noite de verão e a floresta está cheia de fadas e elfos que decidem brincar com eles quando adormecem. Um duende, Puck, deposita sobre as suas pálpebras o suco de uma flor mágica, que os faz apaixonarem-se pela primeira pessoa que virem quando acordarem. E o acaso faz com que, nesse preciso momento, fixem a pessoa errada, o que dá lugar a todo o tipo de equívocos. Até a rainha das fadas fica tomada pela loucura, apaixonando-se por um cómico patego que não pensa senão em negócios e dinheiro e usa uma cabeça de burro. No final tudo se resolve e cada um encontra o parceiro que merece, e volta a reinar no mundo a harmonia dos amores correspondidos.

A obra de Shakespeare ensina-nos que não devemos manter o mundo real separado do mundo da fantasia. A realidade precisa da fantasia para se tornar desejável; e a fantasia da realidade para poder comungá-la com outros. A floresta encantada poderia facilmente confundir-se com o mundo dos livros. Quando lemos, escolhemos visitar aquela floresta onde tudo pode acontecer. É nela que nos aguardam sendas misteriosas, os apelos do desejo, as metamorfoses, as sábias mentiras do amor. Aquela vida adormecida que existe dentro de cada um de nós e que apenas o feitiço da literatura, como a flor mágica de Puck, pode despertar. O tempo da leitura é o tempo intenso do kairos, com as suas irrepetíveis epifanias.

Em 1847, Libri, nascido Guglielmo Libri Carucci dalla Sommaja, matemático, historiador, bibliófilo e cleptólogo – vocação infelizmente quase extinta: ladrão de palavras e de livros – cumpriu um sonho antigo e vendeu ao marquês Giacomo Manzoni pela soma de quatro mil liras um caderno de dezoito folios conhecido como Libreta B ou Codici sul volo degli uccelli de Leonardo da Vinci. Tinha-o, digamos assim, subtraído ao acervo do Instituto Francês e atravessara com ele, sob o seu grosso manto de larápio, as mais diversas e inóspitas paisagens dos Apeninos em dificílimas etapas por caminhos de pé posto.

Entre duas dessas deslocações, uma mulher, Marcela Pontenigro, uma cantora, depois de se ter deitado com ele numa taberna escura, aliviou-o por algumas horas da companhia daquela preciosidade escondida sob a enorme capa escura. Não fazia a menor ideia de quem tinha sido Leonardo, mas ficou maravilhada com o brilho dos esboços. Embriagou triplamente o Conde Libri – com vinho, blandícias e um singularíssimo movimento de ancas – e, enquanto o viajante se banhava numa enorme tina de cobre, ela, Marcella, atravessava já os campos com os uccelini de Leonardo debaixo do braço.

Era primavera, os pássaros cantavam e estava muito frio. A ladra do ladrão olhou atentamente para o códice. Jamais entrara numa biblioteca, mas já tinha entrado nas carteiras e bagagens de muitos homens para saber que a divícia brilha de muitos modos. A letra minúscula do artista, certos números e asas, a cor melada do documento e um aroma de voos pretéritos ​​e emplumados absorveram toda a sua atenção. Que os pássaros vivos coincidissem num determinado momento com os desenhados era, pareceu-lhe, uma espécie de milagre, um milagre que ela, um pouco a medo, ousou chamar beleza. Marcela chorou.

Havia uma data. 1505. Imaginou o artista num transe semelhante ao dela, a cantora Marcela Pontenigro, e viu-o de costas entregue a palavras e explicações. Nunca lhe ocorrera antes pensar no voo dos pássaros, embora tivesse por diversas vezes pensado nos seus cantos e trinados. Encostada a um velho carvalho, suspirou e de repente a sua respiração ficou suspensa na garganta quando viu passar um lobo com uma presa, uma enorme ave preta, na verdade. Ficou com medo do mau agouro e decidiu devolver o que havia roubado, já que não tinha a quem vender e poderia ser até acusada, quem sabe, de um roubo anterior ao seu.

Regressou à taberna e deu de caras com o enfurecido Conde Libri, que andava à procura dela por todo o lado para denunciá-la. Pelo menos foi o que ele lhe disse.

«Sinto muito», confessou Marcela Pontenigro, «queria desfrutar sozinha da sua beleza. Até hoje só me interessava o canto dos pássaros, mas de agora em diante admirarei ainda mais o seu voo. O teu signore Leonardo fala de coisas notáveis.

«Leste-o?» perguntou Libri, cujo nome explicaria aos futuros académicos a razão pela qual se veio a tornar, depois de ser um académico de prestígio em França e em Itália, um ladrão de cartas e manuscritos famosos. Para o bem e para o mal, o destino parece estar escrito em certos nomes.

«Frases e palavras soltas», sorriu, desculpando-se, a cantora.

«Cortar-te-ia um dedo de cada mão» – disse Libri, voltando a guardar o Codici sul volo degli uccelli e ajeitando sobre os ombros o pesado manto sob o qual tantos livros roubados tinham cruzado vales e montanhas – «ainda que seja verdade que, tão frequentemente, sejamos tentados a apreciar sozinhos a beleza. Gozei do teu corpo por um instante, pelo que te perdoo quereres tu admirar agora o documento por um outro tanto. Ler é uma das formas mais silenciosas de fazer amor.

«Quem sabe» – disse a cantora Marcela Pontenigro – se toda a beleza não é mais do que a devolução de alguma coisa que se perdeu.

«É precisamente isso que fazem os espelhos», exclamou Libri, enquanto colocava o chapéu, «pois com a mesma felicidade se esvaziam e enchem. Devolvem sempre o que se lhes mostra.»

Ingmar Bergman realizou um filme inspirado no texto de Shakespeare: vários casais encontram-se numa casa de campo e, sob o encanto da noite, trocam as suas palavras, os seus desejos, as suas decepções. Numa das cenas, uma personagem diz que o amor é um malabarista capaz de manter três bolas no ar. Uma é o corpo; outra, as palavras; e a terceira, o coração. Quando amamos, somos esse malabarista, e o nosso corpo inflamado pelo desejo, as palavras que o preenchem de sonhos e o coração que nega a morte permanecem miraculosamente suspensos no ar. Não foi sem surpresa que Libri descobriu quão bem adaptado ao voo está o corpo dos amantes.

Quando aqueles dois ladrões se separaram, tocaram os sinos nas redondezas. Em 1892, o leonardista Théodore Sabachnikoff comprou o códice do Marquês Manzoni por uma quantia irrisória. Em 1893, o estudioso ofereceu-o à Rainha de Itália, Margarida de Saboia, que por sua vez o doou à Biblioteca Real de Turim, onde ainda hoje, com indulgência, consente o brilho o nosso olhar.

No décimo folio, no canto inferior direito, por entre um aroma a resina almiscarada e bergamota, ainda se pode ver uma lágrima de Marcela.