Há perto de vinte anos, ainda o transporte de malas era, alegadamente, um exclusivo do motorista do homem que se tinha tornado Primeiro-ministro, participei num debate onde, a dada altura, se falou da insegurança que se vivia pelos subúrbios da capital. Eu mal havia chegado à idade adulta, depois de uma infância e uma adolescência sistematicamente prendada com assaltos, roubos e aqui e ali uns estaladões tomados sem resposta digna face ao medo de ver resplandecer o brilho de alguma navalha, a que nas televisões se chamavam «armas brancas». Queixei-me dos constantes roubos a que tantos, como eu, eram sujeitos diariamente, e de como essa prática era intolerável. Naquele debate, uma das intervenientes, então dirigente do Bloco de Esquerda, pedagogicamente procurou demonstrar-me o erro do meu queixume, pedindo-me exemplos concretos. Lá tive de lhe oferecer alguns, como um roubo de uns sapatos de ténis a alguém que conhecia e que tinha ido descalço para casa num daqueles dias. E a vetusta progressista, compreendendo onde queria chegar, isto é, à demonstração concreta de que o crime se passava diariamente por um punhado de trocos, encheu o peito de ar e, pacientemente, lá me explicou que o privilegiado dono das sapatilhas não tinha sido vítima de um crime, mas de um gesto de desespero por parte de alguém que, não andando descalço, não possuía os meios necessários a adquirir uns da mesma marca. No fundo, não havia razões para alarme, nem sequer para a queixa-crime, antes devíamos abandonar todos o nosso calçado e procurar oferecê-lo a quem o pretendesse possuir sem o pagar. Não ficaríamos descalços, reforçou, já que o Estado, através da política social, faria depois o favor de nos reparar a falta de sapatos nos pés, recorrendo aos impostos… Enfim, fiquei vacinado.

Por razões que só o jornalismo lisboeta compreenderá, o Bloco de Esquerda, que, em bom rigor, defende esta lógica de estúpidos aplicada a toda e qualquer política pública, nunca foi retratado como força revolucionária, radical ou anti-democrática. O Bloco que, entre uma meia dúzia de bem intencionados, foi também um albergue de terroristas condenados e de simpatizantes de carnificinas, nunca foi um partido ostracizado, talvez por ter beneficiado da aura romântica que lhe foi conferida por um par de demagogos elitistas que fizeram carreira falando de pobres quando o único que alguma vez conheceram foi a mulher que lhes dobrava as trusses.

A história revelada na passada semana, que dava conta do despedimento de mulheres em fase de amamentação que o partido promoveu, não indiciava outra coisa que não mais do mesmo: a profunda hipocrisia e a falida superioridade moral do partido e dos seus dirigentes. Como primeira resposta, dirigentes do Bloco de Esquerda como a eurodeputada Catarina Martins acusaram a notícia de vir das caves de informação da extrema-direita. Quelle surprise, o partido sobreviverá.

No dia seguinte, o país dava de caras com outro enredo burlesco, vindo do outro lado da superioridade moral. Um deputado do Chega roubava malas nos aeroportos e vendia o produto da pilhagem numa plataforma de venda de roupa usada. Desde então, o país parece ter entrado numa cena de uma revista à portuguesa, a que se assiste com pasmo. O partido de André Ventura é monocerebral, já se sabe. Descontando o querido líder e algumas almas penadas com biblioteca e inteligência apresentáveis, parece existir naquela bancada uma corrente de ar que circula velozmente e culmina sempre em cima dos ombros do seu líder parlamentar, em cujo crânio não parece resistir qualquer forma de vida inteligente. Ventura acusou o desconforto evidente de possuir um pilha-galinhas ao seu lado, e despachou-o como uma encomenda. O alegado pilha-galinhas decidiu não tirar o assento da cadeira parlamentar. E o turino que lhes chefia a bancada, chegada a sua vez de receber a corrente de ar, bolçou aos microfones do hemiciclo uma oferta de pancada ao seu antigo colega. O partido também sobreviverá, naturalmente. Se há coisa boa em tudo isto é que terá ficado claro para o país inteiro que talvez não seja grande ideia procurar no moralismo, de esquerda ou de direita, a salvação. Cada um à sua maneira, todos os partidos recrutam e dão estrada para andar ao que de mais reles habita o bas-fond nacional. É um declínio com alguns anos. O Chega não é excepção a essa regra. E não é mau se aprendermos a conviver com a ideia de que o Parlamento não é composto de gente melhor que aquela que o elege.

Seria estranho observar que não há, em todas estas circunstâncias, boa parte do jornalismo incluído, quem não se sinta moralmente superior ao adversário. Mas não há em nada disto estranheza alguma, quando já ninguém parece ter nada para oferecer de novo e de esperançoso. Enquanto Trump acelera a todo o gás na direcção que pretende, Pedro Sanchez aproxima Espanha da China, e a Europa parece não saber o que fazer perante um novo mundo que não compreende, Portugal surge-nos assim, como uma pilhéria que alivia, um analgésico todo feito de ridículo, e onde nas televisões se vai falando de como os Estados Unidos parecem um manicómio a céu aberto, como que por oposição aos iluminados da pátria, que vão tomar brunch ao Ritz e esfregar a sua gloriosa irrelevância às Amoreiras. É uma bênção ser português.

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