Prenúncios de mudança no horizonte, a aproximação do futuro — e não sei se hei-de ter medo das transformações ou de me alegrar com o novo. É muitas vezes assim, diante da vida, quase como se não tivéssemos sido nós a pôr as mudanças em curso, como se estivéssemos contrariados no desenrolar que nós mesmos pusemos em marcha.

Há quem tenha tendência para suspender os projectos assim que se afigura esse estranhamento em que parece que não somos os donos da nossa vida.

Uma pessoa não é uma ilha. A mais simples mudança acarreta várias pessoas. Temos de partilhar os nossos planos com os outros e lidar com a forma como os interpretam. E então parece, a certa altura, que já não queremos aquilo que queríamos, tendo em conta tantas implicações, justificações, expectativas, custos.

Mudar não aflige sempre. Aflige mais a sensação de que no nosso esforço por mudar fomos quase personagens de outro romance, que não foi nossa responsabilidade terminar uma vida e começar outra.

Estou por vezes nessa encruzilhada, em que ainda sinto o passado perto e já tenho um pé noutra vida. Tenho medo de saltar e de cair e, ao mesmo tempo, medo nenhum. Medo de viver aquilo que fiz por conquistar. E, ao mesmo tempo, medo nenhum.

Tenho visto a chuva nos campos nestes primeiros dias de Primavera. Espanta que os lugares por onde passamos depressa existam e continuem além da nossa visita fugidia. Como é prometedor que existam as terras que vejo do carro e que persistam existindo para lá do instante breve em que as olho pela rama. Em projecto, sou, como Campos, feliz em todos os lugares que vejo de passagem.

Se desejei muito tempo ser senhora de mim, nunca desejei o receio e a aflição da mudança, à qual as feridas antigas agora me lançam. Que fazer? Se não há meio de adivinhar o que a vida nos trará, se não sabemos se viremos ou não a ser felizes do outro lado da rua?

Sento-me. Repito o rosário das coisas que não correram bem noutros lados. Faço por me esquecer, continuo.

Li uma vez, e perturbou-me, que a possibilidade de percebermos que de um modo porém desconhecido existe qualquer coisa de profundamente errada com a nossa vida é uma virtude. Pensei nisto, à época, como numa forma de esperança em relação à maneira como fazia cerimónia com as coisas que mais gostava de fazer. Querer escrever e coibir-me de o fazer, nessa altura, era um modo de fazer cerimónia.

A vergonha de escrever era vergonha de crescer, para que ninguém me advertiu. Fazer cerimónia com uma vocação parece-me agora um erro acerca dos nossos destinatários e uma coisa de que nos podemos sentir culpados justificadamente. Somos depositários dos nossos dons, mas eles não são nossos. São devolvidos ao doador como água devolvida pela corrente. A verdade é que não sabemos a quem se dirige uma vocação.

Neste caminho, dou conta da sorte de não se estar sozinho na vida. Conheço muitos solitários inveterados, mas todos eles contam com amizades duradouras. Mudo de vida, mudo com os outros. Não há como não caminhar às cegas, sem saber bem se estamos a fazer a coisa certa, que talvez não exista. Em vez de escolher de olhos vendados, fechar os olhos e seguir os passos dos que vão connosco e têm menos medo do que nós. Não deve haver nada mais triste do que não ter ninguém que nos dissuada do medo de viver.