O filme chamava-se “The Boy in the Plastic Bubble”, estreou-se em 1976, e, visto hoje em dia, parece ligeiramente ridículo (ou, até, profundamente ridículo, como pode confirmar). A premissa é simples: John Travolta é um rapaz que nasceu com problemas no sistema imunitário que o obrigam a viver dentro de uma bolha de plástico que filtra todos os seus contactos com o ar exterior. Esta semana, em entrevista à Visão, António Costa acusou os seus críticos de também eles viverem numa “bolha” e de, por causa dessa debilitante condição, não serem capazes de perceber quais são as reais preocupações e alegrias dos portugueses. Para o primeiro-ministro, o facto de o seu secretário de Estado Adjunto ter saído do Governo na sequência de uma acusação do Ministério Público é apenas um “caso”; a pátria está irreversivelmente a aproximar-se da riqueza da Alemanha; e o Estado a que o PS preside tem dinheiro suficiente para distribuir pelos autóctones e para encandear as instituições internacionais com o brilho dos seus sucessos.

E, no entanto, não querendo recorrer ao pouco imaginativo argumento de “quem-diz-é-quem-é” , realmente é o primeiro-ministro quem parece viver numa “bolha” muito particular. Afinal, só alguém que viva numa bolha é que pode convictamente achar normal, aceitável e recomendável que, com a capital do país afetada por duas cheias em poucos dias, o primeiro-ministro tenha ficado a assistir ao que se passava pela televisão. Havia habitantes a perder tudo e comerciantes a perder tudo; havia bairros alagados e muros derrubados; havia angústia, medo e aflição. Enquanto isso, percebemos agora, António Costa estava em casa, presume-se que de pantufas, amuado e furioso porque o presidente da Câmara não lhe telefonou para o consolar pelo facto, apesar de tudo menor, de a garagem da casa na qual é inquilino ter ficado inundada. Nos dias seguintes, no rescaldo das cheias, António Costa manteve-se na sua bolha e decidiu mandar a ministra Mariana Vieira da Silva como seu avatar para lidar com o assunto, evitando assim cruzar-se com polémicas e contrariedades.

Houve outras ausências que só podem ser descritas como estranhas. O PS aprovou a legalização da eutanásia sem que o chefe político desta maioria absoluta achasse necessário explicar ao país as motivações da sua iniciativa. Em 2017, numa entrevista à Rádio Renascença, António Costa apareceu cheio de dúvidas: “Eu se fosse deputado… [hesita]. Não tenho a certeza como votaria, sou-lhe totalmente sincero. Sei que não votaria contra, não sei se votaria a favor”. Agora, o líder do PS já não tem hesitações? Votaria a favor, como fez o seu partido? Se sim, o que o levou a sair de uma zona de dúvidas para entrar num terreno de convicções? Se não, o que o levou defender que, perante a sua própria ambiguidade, seriam algumas dezenas de deputados a decidir por todos os portugueses numa matéria que divide a direita e a esquerda? As perguntas são muitas, as respostas são nenhumas — porque António Costa achou que este tema não valia um segundo da sua muito ocupada vida.

O que é que explica que, tendo acabado de ganhar uma maioria absoluta, António Costa se tenha transformado no novo “rapaz da bolha”? Pode ser cansaço ou pode ser soberba. Mas, seja uma coisa, seja a outra, ou seja uma azarada mistura das duas, alguém devia avisar António Costa, caso ele esteja disponível para ouvir, que a sua bolha particular não se confunde com o PS; que o PS não se confunde com o Governo; e que o Governo não se confunde com o país — mesmo que às vezes pareça que sim. Por isso, se António Costa não rebentar a bolha, alguém a vai rebentar por ele.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR