Não eram um grande exército, os 300 cavaleiros e os 100 besteiros, mais um milhar de peões. E também não eram muito experimentados na guerra. Mas era o que havia e o novo fronteiro que trouxera aquela hoste de Lisboa não teve dúvidas em, mesmo assim, dar batalha aos invasores.

Os castelhanos eram aí uns mil cavaleiros, mais uns 4000 infantes. E os chefes eram Sancho de Tovar, Juan Alonso de Guzmán, o mestre de Alcântara, e o próprio irmão mais velho do Condestável português – Pedro Álvares Pereira, mestre do Hospital. Os manos mais velhos do novo fronteiro andavam com Castela e não deixavam de mandar tentadores convites a Nuno para que se passasse para o lado correcto, o do direito internacional dinástico, que seria muito bem recebido e recompensado. E isso criara até, para fúria do Condestável, alguma suspeição entre os portugueses sobre a sua lealdade. Eram outros tempos, ainda não tinha raiado a luz do progresso, da razão e da democracia sobre aquela proto-populista “idade das trevas” onde, na percepção dos comuns, os de cima punham os interesses próprios e os da família à frente do bem público; por isso todos estranhavam que Nun’Álvares não integrasse a que parecia, à partida, a facção vencedora.

Os castelhanos preparavam-se para cercar Fronteira, que tomara o partido do mestre de Avis. O Condestável escolheu uma posição vantajosa, próxima da vila. Ali mandou apear a cavalaria e organizou um dispositivo militar, com as lanças e besteiros fechando o quadrado. Teria conhecimento das batalhas em que, nesse mesmo século XIV, os infantes apeados tinham vencido a cavalaria feudal? Havia algumas, como Courtrai (11 de Julho de 1302), em que os plebeus flamengos tinham derrotado os cavaleiros franceses de Filipe, o Belo; e doze anos depois, em 24 de Junho de 1314, os cavaleiros ingleses em Bannockburn tinham sido vencidos pelos lanceiros escoceses apeados de Robert Bruce; no ano seguinte, em 15 de Setembro de 1315, fora a vez do duque Leopoldo da Áustria ver em Morgaren a sua cavalaria massacrada pela infantaria suíça; e depois tinham sido as batalhas decisivas da Guerra dos Cem Anos, a guerra franco-inglesa, em que os ingleses tinham derrotado sucessivamente os franceses, bem mais numerosos, graças às forças de infantaria apeada, mas também, e sobretudo, aos arqueiros, munidos dos arcos grandes ingleses, com uma cadência de disparo muito superior à das bestas – em  Crécy, em 1346, e em Poitiers, dez anos depois, combates em que se ilustrara Eduardo, o Príncipe Negro.

Do patriotismo dos historiadores

Nun’Álvares, nos Atoleiros, repetiu a táctica com grande sucesso. As narrativas que temos da batalha cedem aqui e ali ao “partidarismo” dos dois historiadores que as lavram, o castelhano Pedro Lopez de Ayala e o nosso Fernão Lopes (talvez uma outra característica exclusiva da facciosa “idade das trevas”). Ayala mal fala dos portugueses, refere-se a Nun’Álvares por “ele” (“pelearan com él”) e atribui a derrota dos seus à “la mala ordenanza que ovieran”. E chega mesmo a arranjar um expediente para dar a entender que a vitória dos portugueses não fora assim tão grande vitória, pois os castelhanos, no final, tinham reagido, evitando que os perseguissem.

Fernão Lopes é mais explícito: Nun’Álvares tinha o dispositivo defensivo bem articulado e esperou a carga de cavalaria pesada com que os atacantes queriam lançar o terror entre os portugueses. Mas estes permaneceram firmes nos seus postos, de lanças em riste, numa muralha de ferro intransponível, contra a muralha móvel a cavalo. Era o choque clássico a que, ainda durante a cavalgada, os besteiros acrescentavam os disparos de frechadas contra os que “carregavam”. E ao chegarem à parede de lanças que os esperava, os atacantes espetaram-se ali, sem remissão.

Segundo o cronista português, os mortos inimigos seriam 117, entre os quais o mestre de Alcântara. Lopes parece não admitir baixas na hoste portuguesa, omissão de que temos o direito de desconfiar, mesmo sem os sofisticados mecanismos de fact checking e os isentos comentadores de que hoje dispomos.

Lopes continua também a refutar, sem nomear o autor, a versão de Ayala sobre a resistência final dos castelhanos aos ataques portugueses, dizendo que eles “fugiram em vários sentidos e direcções”.

Com a vitória portuguesa dos Atoleiros, em 6 de Abril de 1384 – faz amanhã, domingo, 641 anos –, ficou neutralizada a força castelhana que pretendia avançar pelo Alentejo e envolver Lisboa pelo Sul – Lisboa que, na altura, já estava outra vez a ser cercada.

O trio maravilha

Escrevi, por ocasião da canonização do beato Nuno de Santa Maria, uma biografia do “cavaleiro-monge” e Santo Condestável de Portugal. É uma figura chave da nossa História; um dos integrantes, com o Mestre e João das Regras, do “trio maravilha” a que ficámos a dever a nossa independência política.

Neste tempo em que, depois da vaga globalista e mundialista pós-Guerra Fria, as grandes potências reconstituem uma nova ordem geopolítica assente na Realpolitik dos interesses nacionais, não podemos deixar de reconhecer o pioneirismo e a originalidade da revolução portuguesa de há mais de seis séculos. Porque foi disso que se tratou, de uma revolução que pôs em causa a ordem internacional dinástica – que legitimava como sucessor ao trono de Portugal D. João de Castela, casado com a filha única de D. Fernando, Dona Beatriz –, em nome de um valor novo, de um sentimento de “identidade nacional” que reagia à entronização de “um rei estrangeiro”.

E convém recordar que a revolução foi interclassista. A historiografia marxista, manipulando algumas passagens de Fernão Lopes, tentou passar uma versão “luta de classes” da revolução – nobreza versus povo, os grandes contra os comuns –, mas José Mattoso e Maria José Pimenta Ferro vieram demonstrar que qualquer dos dois partidos – o “português”, o do mestre de Avis, de Nun’Álvares e de João das Regras, e o “estrangeiro”, o de Castela – tinha apoiantes entre a nobreza, a burguesia e o povo. Talvez em diferentes proporções, mas tinha. Houve, por isso, divisões transversais; regra geral, os chefes das casas, os filhos mais velhos, ficaram com a legalidade, com Castela; e os bastardos e os filhos segundos, com o Mestre de Avis; os burgueses e o povo de Lisboa e do Porto também estavam maioritariamente com o Mestre e outros seguiam o pronunciamento das terras e castelos.

O que é interessante é que há quase seis séculos e meio tivesse surgido na ponta extrema da península hispânica, neste extremo ocidental da Europa,  um movimento com gente de todos os grupos sociais que encontrou chefes capazes de vencerem nos campos de batalha e nas cortes de Coimbra.

Depois, conquistada a independência e sob a chefia da dinastia de Avis, os portugueses buscaram um espaço vital nas viagens atlânticas e no controlo do Índico, não se limitando à exploração económica dos recursos mas exportando o Estado, no que foram pioneiros.

E com a desgraça de Alcácer Quibir e o fim da aventura, o trono caía outra vez nas mãos do rei dos vizinhos. Quando acordámos – graças à “espanholização” forçada de Olivares, ajudados pela conjuntura europeia e guiados pela vontade dos conjurados de 1640 – retomámos a independência e consolidámo-la em batalhas que vencemos, outra vez, em desvantagem. E recuperámos parte do Império.

Império que perdemos de vez há cinquenta anos, voltando à “pátria de novo pequena”.  Uma pátria em que já poucos, entre as elites, valorizam a independência, e em que a pequenez está cada vez mais longe de ser só geográfica.