Poucos modos de vida são mais ignominiosos do que o dos profissionais do medo. Ganham a vida a fazer-nos crer que não conseguimos, não merecemos. Querem que nos calemos, que nos encolhamos, que nos retiremos. Quem conduz a sua vida em público está especialmente à sua mercê.
Vemo-lo na televisão, em conversas de circunstância, na voz de algumas pessoas, em bando anónimo ou em versão unipessoal.
Às vezes, conseguem. E vemos, com pena, os visados desaparecerem, não porque se acobardam, mas porque duvidaram e se encheram de vergonha, porque adoeceram. O medo é a transformação única pela qual todas as caras são a mesma cara inimiga, onde quer que se esteja, seja lá onde for, para onde quer que se olhe essa cara olha-nos em tudo, vemo-la a cada esquina, bichana à nossa passagem, em todas as línguas do mundo, está nas coisas que vemos, nas pessoas por quem passamos na rua — é todos os estranhos, as frases lidas, as figuras sonhadas, os sons, mil sustos, os arruamentos todos, em qualquer cidade.
Se primeiro temos a impressão de os ver a cada esquina, e o medo de os encontrar começa a fazer-nos mudar de direcção e alterar os nossos planos, rapidamente vamos desenhando os parâmetros de uma jaula, uma nova cidade que a cada dia perde uma ou duas ruas. Se tudo se inicia com o medo de os encontrar em lugares onde faz sentido encontrá-los, rapidamente se imagina poder vê-los e querermos afastar-nos de lugares onde jamais iriam, nos nossos lugares, entretanto tornados ameaçadores.
Gostava de escrever um pequeno tratado sobre a infatigabilidade dos maus e a sua energia inesgotável, mas a preguiça gigantesca que, abençoadamente, se acomete de mim assim que penso nisso vence sempre. A vida é tão estupidamente bela e desmesuradamente feia, porquê perder tempo com a indústria do medo, quando podemos bem estar a dormir?
(Contaste-me que sonhaste que o diabo já tinha chegado, estes são os tempos do diabo, a guerra, as tarifas, a convulsão por todo o lado, cheias, inundações, uma lista de tristezas tremendas a caminho da esperança, enquanto procuro sossego, sabes o que procuro?, a lista de pessoas a despejar, trazida pelo funcionário camarário, Anizete dos Santos Silva Rego, Euclides da Costa, Patrocínio Vaz, Vera Cacilda de Sousa, mulheres com os filhos às costas a erguerem barracas na encosta da ponte 25 de Abril, vão ao Leroy Merlin comprar cimento e tijolos, ou é um primo que traz, ou roubam na obra?, como são as noites de granizo?, fazemos pouco, deste lado do mundo, dos alertas meteorológicos exagerados, mas o mais singelo aguaceiro inunda, além, o quartinho dos miúdos, senhoras no autocarro, a cabeça encostada à janela, lembram-me a avó Lucinda, uma lista só de coisas tão medonhas que são belas, as casinhas dispersas na correnteza da linha de comboio, onde a vida é branda e triste, porque é Portugal tão feio?)
Trabalhar em público obriga a esquecermo-nos de que os profissionais do medo existem e a aprender a ignorá-los, fazendo crer que os amamos. Lembro-me do poeta velho e sábio que dizia em resposta à pergunta “Toda a gente gosta de si. Como consegue gostar de toda a gente?” “Eu não gosto de toda a gente, as pessoas é que não sabem de quem é que eu não gosto.” Poucas coisas são tão preciosas como o bouquet secreto das pessoas que desprezamos. Há que estimar o bouquet e o segredo com igual dedicação. E entregarmo-nos ao que amamos fazer exactamente como se o mundo fosse tão belo quanto pode ser só na nossa imaginação.
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A profissão do medo
O medo é a transformação única pela qual todas as caras são a mesma cara inimiga, onde quer que se esteja, seja lá onde for.