Poucas são as palavras que poderão reivindicar a densidade semântica e simbólica do Logos. As reiteradas sondagens espeleológicas a que, da matemática à retórica, o pensamento tem submetido esta palavra reflectem, de maneira mais ou menos velada, um dúplice veio semântico presente no étimo de que deriva e de que o Logos é apenas conclusão ou resultado: o primeiro, mais imediato – reunir, recolher, juntar; mais analítico, o segundo – discernir, escolher, enumerar. Desta primordial conjugação semântica, destacou-se logo na Antiguidade a actividade de contar, tanto no sentido de narrar factos heroicos, dignos de história e fama, como no sentido de pensar e calcular, actividades inerentes a quem tem de fazer ou prestar contas.

Não tardou que o pensamento filosófico, na sua dúplice reverberação de narração e cálculo, se transformasse em reflexão, argumentação, justificação, comprometendo o sujeito que fala com aquilo que diz: a palavra repete, na sua terna finitude, esse momento e intenção do Logosdizer, mais do que um privilégio, é o enobrecimento de uma responsabilidade.

Esta herança que, emergindo em Parménides e Heraclito, tem garantido indelevelmente a responsabilidade da palavra dita enquanto património ocidental do exercício público, sofre hoje tratos de polé sempre que um porta-voz parlamentar, secretário-geral adjunto ou videirinho equiparado, movido por sanha canina, decide abocanhar um microfone.

Julgava eu, ingénuo, que o princípio da não-contradição, por exemplo, não era passível de demonstração absoluta ou directa por nada lhe ser anterior e que aquela norma kantiana de a coisa alguma convir um predicado que a contradiga permaneciam inabaláveis fundamentos da racionalidade até ter tropeçado nas pérolas linguísticas de um combinado de jactância e momice de bonifrate que responde pelo nome de João Torres – secretário-geral adjunto do PS e engenheiro civil nas horas vagas (a predileção do PS pela espécie já merecia exame diligente).

Com efeito, desde que dei por este colosso retórico, tenho experimentado a melancólica ventura de um ornitólogo: perdida a conta aos exemplos com que ele nos brinda de ufano desdém pelas normas básicas da concordância, de menosprezo pelos rudimentos da subordinação e pela utilização imprópria dos mais primários conectores frásicos, não me restou alternativa senão prestar atenção ao esmerado conteúdo das palavras, chamemos-lhes assim, que ele diz.

Na verdade, comprometidos os objectivos comunicacionais do sr. Torres, é lícito presumir que ele fala para assinalar a sua existência – facto que, com melancólico júbilo, registamos. Não me parece, contudo, que aqui resida a maior gravidade dado que as imperícias gramaticais do sr. Torres facilmente se corrigem com um vulgar prontuário ou gramática e a existência do dito se evita com profilática distância de écrans à hora de vésperas.

Para fortuna nossa, o sr. Torres não se limita a existir. Com efeito, apesar de não saber falar, não só o faz com afã e zelo, como, ainda por cima, tem opiniões e, ao que dizem, pensa. Pensa ele, nomeadamente, que “o neoliberalismo tomou conta” da oposição, confirmando a suspeita de que sob as meninges do petiz se acoita um estranho dicionário em que o adjetivo liberal (palavra que ele se recorda de sublinhar numa página do livro de Estudo do Meio do 3º ano e ao lado da qual desenhou uns chifres luciferinos) equivale a vitupério vicentino; que, após o veto presidencial, a reconfirmação do diploma Mais Habitação “não constitui qualquer manifestação de arrogância”, palavra com que, talvez pelo número de sílabas e pela rima perfeita, o jovem infante do Rato se atrapalha, confundindo frequentemente com manigância; que “o estado social é um desígnio permanente do partido” embora o povo, por certo por ignara contumélia, da Saúde aos transportes passando pela Economia, não saiba o que fazer aos frangalhos em que oito anos de dedicado propósito deixaram o tal do estado social; que “felizmente, o Partido Socialista tem sido um bom exemplo de uma renovação constante e permanente”, razão pela qual para dinamizar, digamos, a recente agremiação das crias do clã na respectiva Academia, o sr. Torres se tenha visto acompanhado do viço de um Augusto Santos Silva (67 anos), do desembaraço de um Manuel Pizarro (60 anos), do frescor de um Carlos Zorrinho (64 anos) ou da pujança atlética de um Carlos César (66 anos); e, por fim para não maçar, que “o PS protege a democracia” proclamação solene ainda banhada por lágrimas e lábio trémulo com que se aliou a partidos anti-europa, anti-democracia, anti-nato, anti-economia de mercado e basicamente anti-qualquer-coisa-remotamente-parecida-com-uma-sociedade-madura-e-livre.

Crédulo e ingénuo vivi, julgando que era a própria lei da ordem do real a fundar o ser das coisas e, em consequência, a ordem lógica que regula o conhecimento delas; que o princípio da não-contradição era condição imprescindível e necessária de todo o pensamento que se pretende coerente e eficaz. Reservava-me a vida a epifania deste titã oratório que, distinguindo a emigração jovem de 2008 da de 2015-2023, afirmou que a primeira se ficou a dever a uma ordem (juro!) do primeiro-ministro de então e a mais recente à vontade dos próprios, deduzindo-se deste silogismo que a percepção da gravidade de uma sangria de talento e vidas depende do momento em que ocorre. Tal como a verdade, suponho.

Que a séculos de trivium e quadrivium possa ter escapado o que a este excelso tribuno se impõe com a luminosidade de um axioma é algo que me inquieta: caso nada se possa afirmar com verdade, é evidente que não se pode afirmar que exista alguma afirmação verdadeira! Mais: nada tem sentido e tudo é equivalente. E vice-versa!

E assim, ao compasso das erupções vocabulares do sr. Torres – esmerado, diligente, arrotando satisfação – vamos capitulando diante do seu sinistro mundo, um mundo em que a exclusão mútua entre os membros de uma oposição, entre o mais simples sim e não, deixou de expressar uma incompatibilidade lógica ou metafísica.

Para o oráculo de Delfos, umbigo do mundo, a ironia era a construção de uma fingida ignorância. O oráculo do Rato dispensa o adjectivo.