Às vezes dou por mim a pensar. Outras vezes dou por mim a pensar em assuntos muito específicos e fundamentais: é preferível fio dentário ou escova interdental? Quantas horas de filtragem são adequadas a uma piscina no Inverno? O melhor de Mark Twain é a ficção ou o resto? A partir de que ano o jazz deixou de prestar? Será que tolero demasiadas asneiras de Trump por causa das monstruosidades a que ele se opõe? As respostas, necessariamente precárias, são: não sei; duas ou três; talvez o resto; por volta de 1942; sim, tolero.

Em menos de três meses, com resultados razoáveis ou por apurar, Trump tem exercido uma encantadora oposição a inúmeros horrores da vida contemporânea: as políticas de “diversidade” e “inclusão”, a promoção de delírios anticientíficos acerca dos sexos, a imigração desvairada e descontrolada, as fraudes institucionais que são a ONU e em particular a OMS, a rebaldaria dispendiosa da USAID e dos serviços públicos em geral, a descontracção confortável dos demais países da NATO, a actuação solta dos terroristas de Gaza, do Líbano e do Iémen, a legitimação do anti-semitismo nos “campus” americanos, o cinismo do “apoio” internacional à Ucrânia, etc. Sobretudo notável foi o discurso de JD Vance em Munique, vinte minutos de enxovalho da Europa nos pontos exactos em que esta Europa merece ser enxovalhada.

Admito que, em mim, o combate de Trump a tamanhas monstruosidades, seja por convicção ou por cedência aos eleitores, distorce para cima a avaliação objectiva do indivíduo, um faroleiro repleto de defeitos que não se devem ignorar. Obviamente não me refiro às vítimas do Trump Derangement Syndrome (TDS), que não ignoram os defeitos, incluindo os inexistentes. Para os pacientes de TDS, cuja maioria achava Biden um portento de lucidez, Trump é brutalmente estúpido e sinistramente maléfico, virtudes complicadas de conciliar e que se estendem a todos os que o rodeiam, a todos os que votaram nele, a todos os que alguma vez elogiaram moderadamente uma decisão dele –  e àquilo em que ele toca, seja a caneta ou o lenço de assoar.

Mas é preciso sofrer da doença oposta – sugiro Maga Patológica, expressão de que genialmente me lembrei sozinho e de seguida verifiquei que já fora utilizada com conotação distinta pelo meu amigo Tiago Dores – para desprezar completamente a evidência de que não há apenas motivos de celebração. Para os fiéis, Trump é Deus Nosso Senhor, o lenço de assoar é lindíssimo e o espirro que o precede um sinal críptico de que Sua Divindade está a jogar xadrez em 3, ou 4, dimensões com adversários toscos na bisca lambida. Nos EUA e por cá, os devotos de Trump padecem da mesma cegueira que os doentes com TDS: ambos vêem as acções do homem à luz das suas próprias fezadas, que determinam à partida o carácter prodigioso ou catastrófico de cada acção. Os primeiros acharão impecável que Trump atropele uma velhinha, os segundos condenam-no por descobrir a cura do cancro.

Trump, que se saiba, não atropelou velhinhas nem tornou obsoleta a oncologia. Por enquanto, mostrou uma saudável vontade de demolir o edifício “woke”, motivo para que um céptico, perdão, um moderado como eu lhe conceda sucessivos descontos. Estou disposto a descontar as atoardas alusivas ao Canadá e à Gronelândia a título de “bluff” e estratégia de influência. Desconto a enxurrada de bombásticas e exaustivas declarações diárias, que visam dominar a “agenda” e deleitar o autor com os abalos que provocam. Desconto o modo e os modos, um “estilo” que não é novidade e é escusado esmiuçar com detalhe. Em princípio, não desconto as tarifas.

Desde 2 de Abril li e ouvi dezenas, quiçá centenas de especialistas a propósito das tarifas apresentadas por Trump. Custou-me arranjar dois moços que partilhassem uma tese explicativa comum das razões pelas quais são prejudiciais, os prejuízos que podem causar e a identificação dos prejudicados. Os especialistas dedicados a explicar que as tarifas serão benéficas, um grupo bastante minoritário, também não se entendem quanto à essência dos benefícios, ao processo que conduz aos benefícios e aos destinatários dos benefícios. E ainda sobra a questão da justiça: as tarifas são justas ou injustas? É um nevoeiro de palpites. Na dúvida, vou pela certeza: as tarifas alfandegárias, as de Trump, as nossas e as de quem calha, conferem poder e dinheiro aos estados. E eu, que jamais apreciei o reforço da capacidade dos estados em controlarem a economia e açambarcarem o rendimento alheio, não vou desatar a apreciar agora. Porém, até me disponho a descontar as tarifas se, hipótese remota, estas forem um instrumento de negociação para reduzir ou – milagre sublime – acabar com as tarifas. E só aí.

O que não desconto em hipótese nenhuma, e me leva a manter um pezinho atrás, é o narcisismo de Trump, a crença, aparentemente sincera, de que o mundo principiou com ele e acabará com ele. Com ele, é tudo “nunca visto”, “o maior de sempre”, “como ninguém conheceu”. Tirando McKinley, o antecessor que cita a pretexto das tarifas, Trump parece habitar um vácuo histórico, um lugar que a sua inigualável pessoa preenche e esgota. A soberba não lhe permite conceber um tempo que não seja o seu, nem entrar a noção de que a América existia antes de Trump e, apesar das previsões dos detractores mais transtornados e das ofensivas insinuações do próprio sobre um terceiro mandato, continuará a existir depois – um truísmo que a vitória dos democratas em Novembro não garantia.

Nota: Esta crónica vai de férias e eu também. Regressamos ambos a 26 de Abril.