Talvez não seja evidente, mas é provável que a Liga dos Últimos, na sua combinação entre comicidade e realismo, tenha sido um dos melhores programas da televisão generalista em Portugal. Longe da capital, aquelas imagens são o que mais se aproxima do país real e de uma sabedoria popular genuína, que persiste apesar de o espírito cosmopolita a cobrir de vergonha. Um dos seus melhores momentos é possivelmente o do adepto do Couvelha, que, após um acidente de viação provocado por distração feminina, assinala o seu justo castigo: pagou bem pelo olhar, pois como manda o padre da sua aldeia, não se deve cobiçar a mulher alheia.

Cada paróquia tem as suas lições. No caso da minha aldeia, o Padre Francisco tende a inspirar-se no teólogo Ermes Ronchi, que citou em novembro para nos recordar que, embora anoiteça mais cedo e os dias pareçam mais tristes, devemos aprender a esperar pela primavera. Afinal, “as coisas mais belas na vida não se procuram, esperam-se.” Trata-se de uma lição particularmente importante se considerarmos que os tempos atuais nos acostumam precisamente ao oposto: as sociedades tecnológicas habituam-nos à rapidez e ao imediato, pelo que gerimos com dificuldade a frustração dos acontecimentos que não conseguimos controlar. De acordo com um espírito ludita, é provável que vivamos hoje mais ansiosos precisamente porque vivemos, mais do que nunca, afastados da natureza – e portanto impossibilitados de aprender a arte da espera. A verdade é que, quando os dias se tornam mais curtos e a chuva parece não parar, nada podemos fazer senão esperar pela primavera.

Num mundo cada vez mais tecnológico, este afastamento da natureza é especialmente evidente nas crianças, que chamam fruta às embalagens de sumo e pensam que a carne que comem é feita nos supermercados. E isso facilita a acomodação de um paradigma de emancipação biológica. Desde as teorias da autodeterminação ao transumanismo, o corpo assume uma dimensão paradoxal: reconhecemos a sua existência, mas assumimos que dele nos podemos emancipar, o mesmo é dizer, libertar.

Em Feminism against progress, Mary Harrington aponta as suas armas a esta assunção e usa o termo “biolibertarismo” para referir a ideologia que promove a separação entre o ser humano e o seu corpo biológico, percecionando-o como algo de que podemos dispor como se de peças Lego se tratasse (“Meat lego”) e alterando, trocando ou removendo as suas partes como se tal não tivesse impacto na nossa condição humana.

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De modo curioso, Harrington identifica a pílula reprodutiva como o primeiro ato de transumanismo: o primeiro dispositivo médico criado para corrigir, não algo que funcionava mal, mas algo que funcionava bem… colocando as mulheres em guerra contra o seu próprio corpo. O seu feminismo contra o progresso é, assim, um feminismo contra a cultura do transumanismo que grassa no Ocidente: esse deslumbramento pela tecnologia, que nos leva a acreditar que podemos corrigir e melhorar tudo – em especial o próprio corpo, superando todas as suas limitações e visando, em última instância, a imortalidade.

Um bom exemplo deste paradigma é Martine Rothblatt, que afirma em From Transgender to Transhuman: a Manifesto on the Freedom of Form:

“Primeiro compreendemos que não estamos limitados pela nossa anatomia sexual básica. E depois despertamos para a ideia de que não estamos de todo limitados pela nossa anatomia. A mente é a substância da humanidade. A mente é mais forte do que a matéria.”

É nesse sentido que a cantora canadiana Grimes tem popularizado o termo Homo techno, que, na sua opinião, estaria a substituir o Homo sapiens, e que a leva a afirmar: “Podemos ser, de facto, o que quisermos.” E Ray Kurzweil, no seu recente The Singularity Is Nearer: When We Merge with AI (uma sequela do anterior The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology), estabelece prazos concretos: a inteligência artificial atingiria a inteligência humana até 2029 e os humanos fundir-se-iam com máquinas até 2045.

Como chegamos até aqui?

Uma frase do manifesto de Rothblatt dá-nos uma pista importante:

“O progresso da civilização tem sido o de tornar o mais irrelevante possível o estatuto com que cada indivíduo nasce.”

Radicalizando os princípios liberais e alimentando-se da ideia de progresso, a ideologia tecno-libertária corresponderia ao paradigma do século XXI: o princípio do consentimento individual torna-se o padrão de validade e legitimidade e, nessa medida, tudo o que não foi escolhido (consentido) aparece como opressor, pelo que deve poder ser eliminado ou transformado – da classe social ao corpo natural.

Como acontece com todos os paradigmas, o tecno-libertário manifesta-se de diversas formas e em diferentes áreas, mesmo que de modo contraditório. Por um lado, inseriu-se no domínio das teorias críticas da Nova Esquerda, apesar de estas serem eminentemente identitárias, aproveitando a porta aberta pelas teorias queer, que desvalorizam o corpo e defendem a autodeterminação da identidade através de uma subjugação absoluta à intervenção médica e aos grandes interesses farmacêuticos. Por outro lado, também se imiscuiu na Nova Direita, como nota Clara Ferreira Alves, quando os ídolos do capitalismo e do globalismo libertários são consagrados no altar político, apesar de representarem o oposto das teorias nativistas e do princípio populista nacionalista.

Em qualquer dos lados, assume-se como religiosidade tecnológica, onde não há lugar para o corpo, para a natureza ou para a espera, e impõe-se como obrigatório. Sentimo-nos, assim, empurrados para um mundo mais próximo do imaginado por Zamiatine ou Aldous Huxley. Mas, como as duas obras demonstram, um mundo tecno-libertário é, paradoxalmente, um mundo menos livre, com a liberdade remetida, juntamente com o perigo, a insegurança e a incerteza, para os espaços naturais de Nós ou dos selvagens de Huxley. Sentimo-nos cada vez mais empurrados para esse mundo, mas queremos realmente viver nele?