A União Europeia tem de investir em defesa. Só esta frase mostra o que mudou desde Janeiro. A ideia de uma paz permanente em que a União Europeia projectava soft power e não se sujava com guerras, acabou em três tempos. O conceito era presunçoso e não passava de uma adaptação subtil, no século XXI, de práticas antigas em que os europeus falavam com superioridade moral para cima dos outros que não passavam de selvagens que precisavam de orientação; até Janeiro deste ano, esses outros não percebiam que as alterações climáticas deviam ser um entrave ao desenvolvimento das suas economias e à melhoria de vida das respectivas populações. Eram necessárias regras e essas regras, naturalmente, seriam ditadas por europeus cheios de boas intenções que já tinham atingindo um patamar de desenvolvimento superior ao dos restantes povos. Eram progressistas, claro. E iluminados, acima de tudo. O século XIX não foi assim há tanto tempo.
Investir em defesa tem uma consequência imediata que é os europeus terem de sujar as mãos. Descerem ao mundo real onde vivem os demais. Vamos ter comprar armas e montar fábricas. Teremos de investir em inovação militar, o que significa usarmos a ciência para obtermos mais e melhor armamento. Teremos de treinar soldados e isso passa por inculcar nos jovens um espírito de missão diferente do que tivemos como certo nas últimas décadas. A concepção do planeta como um espaço comum partilhado por toda a humanidade, em que qualquer pessoa pode fazer negócios com quem quer que seja e pode viajar livremente por onde quiser, está a ser questionado. Ainda esta semana, a Alemanha alertou os seus cidadãos para a possibilidade de serem arbitrariamente detidos na fronteira dos EUA. Com o fim da URSS, muitos visitaram a Rússia e a China. Fiz algumas viagens, mas arrependo-me de não ter aproveitado para conhecer São Petersburgo, Pequim e o exército de terracota, em Xi’an. Algumas dessas viagens ainda são possíveis, mas deixaram de poder ser inocentes e tranquilas. A imaginação de um mundo idílico que os europeus tomavam como certa, acabou.
O investimento em defesa reavivou a questão do endividamento comunitário e da necessidade da UE se endividar através da emissão de Eurobonds. Se tal acontecer, e é quase certo que vai acontecer, fica aberto o caminho para o federalismo europeu. Um federalismo que abarque os 27 em igualdade, ou um sistema com diferentes graus de integração, com um centro mais coeso e federado, seguido de outros, correspondentes a determinadas regiões, com menores níveis de integração. Qualquer que seja a decisão esta conduzirá a uma realidade muito diferente da que conhecemos, pois será o regresso na Europa à necessidade do império, do poder centralizado que gere diversas regiões.
É uma chatice despertar de um sonho bom, mas a realidade tem a vantagem de não ser permanentemente fictícia. Aliás, é curioso, como após o choque inicial, os dirigentes europeus se sintam galvanizados com estas alterações. Depois do receio do que possa acontecer à Europa há uma vontade de pegar no que se tem e fazer pela vida. Se com sucesso, a seu tempo veremos. Entretanto, há dias Trump e Putin falaram ao telefone. É provável que o presidente dos EUA tenha finalmente percebido que Putin não o respeita, o seja, não tem medo dele. Não consigo deixar de sorrir perante a ironia de que aquele que armou toda esta confusão e se julga um super-homem, acabe por ser o mais crédulo de nós todos.