(em atualização)

Com um grupo de funcionários judiciais concentrados à porta do Supremo de Tribunal de Justiça, em Lisboa, a cerimónia de abertura do ano judicial, esta terça-feira, está a ter como som de fundo o barulho da manifestação, audível dentro do edifício. Em pano de fundo já tinha a greve inédita dos juízes, que está em curso e uma paralisação já anunciada dos magistrados do Ministério Público.

Lá dentro, os discursos dos vários protagonistas da Justiça têm deixado exigências e alertas, mas também algum otimismo.

Presidente do Supremo quer juízes a gerirem o sistema informático da justiça

Também pela primeira vez, na qualidade de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, depois de ter tomado posse em outubro de 2018, António Joaquim Piçarra dedicou grande parte do discurso à questão da independência da justiça, fundamento da democracia, mas quis lançar para o debate os problemas com o sistema informático dos processos judiciais, pondo em causa que a gestão esteja “a cargo exclusivo do poder executivo”, ou seja, do Ministério da Justiça.

Lembrando que, há pouco mais de três anos, o Citius teve “um colapso quase completo cujas causas não estão completamente esclarecidas”, pouco depois de ser implementado, e que “são cada vez mais frequentes as referências noticiosas a intrusões ilícitas no sistema” — numa referência ao processo E-Toupeira —, lançou o repto para que o tema volte a ser discutido, admitindo que, no futuro, essa gestão pudesse ser feita também pelos órgãos da justiça.

“Talvez, seja altura de realizar um debate sério sobre a organização e gestão das plataformas informáticas da justiça, desde sempre a cargo exclusivo do poder executivo, e se pondere qual o tipo de intervenção futura das instituições judiciais, nessa área”, afirmou.

Aproveitando a presença “dos mais Altos responsáveis do Estado”, alertou para “os atropelos à independência do poder judicial noutros países europeus, lembrando que se houver “democracias verdadeiras e democracias meramente aparentes, o colapso da Europa será inevitável”. “Como na economia, os bons ventos de fora trazem bom ambiente cá dentro, mas os maus ventos o seu contrário”, avisou.

A questão não é nova. Já em novembro, num encontro de juízes em Coimbra, promovido pelo Conselho Superior da Magistratura, Piçarra tinha dito que o CSM estava “totalmente disponível para assumir a gestão do sistema informático”. Na altura, recusou dizer se já tinha feito essa proposta ao Governo. Optou por insistir no tema na abertura do ano judicial.

No discurso, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça deu conta da evolução positiva do descongestionamento dos tribunais, que se manteve em 2018, explicando que, mesmo tendo entrado 437.554 novos processos nos tribunais portugueses, foram concluídos mais de 500 mil. A contrariar essa tendência optimista, apenas uma “grande dificuldade”, destacada por António Joaquim Piçarra: os processos mais complexos e especializados, que se tornam impossíveis de tratar e que são “julgados e decididos virtualmente sem apoio, em trabalhos insanos que consomem dias, meses e anos, roubando, não raro, tempos de descanso e férias numa dedicação que poucos conhecem e quase ninguém reconhece”.

Sublinhando “de modo muito enfático” que “a falta aqui não é dos juízes”, o Presidente do Supremo aponta o dedo à “organização geral do judiciário que não tem sido capaz de lhes dar os meios para lidar adequadamente com realidades que, nalguns casos, quase ultrapassam a capacidade de tratamento humano”.

“Deixar um juiz, ou um coletivo de juízes, sem qualquer apoio, tratar de processos com 25 mil documentos, 100 mil documentos, ou um milhão de documentos. Há casos em que até mais que isso. Lê-los. Compreendê-los. Estabelecer relações entre eles. Ligá-los ao depoimento de dezenas ou centenas de testemunhas, tentando apurar a verdade de centenas ou milhares de factos imputados, pode parecer quase absurdo. Isto que, há alguns anos foi absolutamente excecional, tornou-se agora algo quase normal”, lamentou.

António Joaquim Piçarra quis deixar ainda uma palavra sobre o conflito que opõe os juízes e o Governo e que está na base da greve inédita que os magistrados têm em curso. Disse que está preocupado que é preciso “rapidamente pacificar o ambiente do setor”, com a revisão, ainda este ano, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, apelando a “um desfecho rápido, que encontre um equilíbrio aceitável e de bom senso entre as legítimas expetativas dos juízes e as possibilidades realistas do país”.

“Seria absolutamente lamentável que esse processo, iniciado ainda na legislatura anterior, não tivesse um desfecho favorável, passada uma legislatura inteira e terminando esta sem a sua conclusão”, resumiu.

Deu, aliás, como exemplo da importância do Estatuto dos Juízes “e das obrigações que estabelece no serviço do país” o facto de o governo ter recorrido a um juiz jubilado para conduzir “um inquérito administrativo único”, numa alusão ao caso da queda do helicóptero do INEM, em Valongo.

Do discurso sobra ainda um alerta: a falta de “pessoas, organizadas e preparadas, para comunicar devidamente as decisões dos tribunais”, fazendo com que haja “jornalistas à porta dos tribunais durante dias inteiros, sem que exista um espaço para os
acolher” e “sem uma única pessoa da estrutura judicial a prestar uma declaração ou sequer a dar uma simples informação”, não é só mau para o trabalho da comunicação social, mas prejudica a imagem da justiça. “É incompreensível e inaceitável”, assegurou.

A questão é, aliás, uma das prioridades que põe na agenda para 2019, depois de um 2018 que considera ter sido “um bom ano para a justiça”. Pela frente, antevê “um ano muito duro”, sobretudo por causa de “um conjunto de processos, cada vez mais alargado, com relevo público e sensibilidade social e económica que entrará em fases decisivas”. Em vésperas do início da fase de instrução da Operação Marquês e com tantas investigações em curso que envolvem grandes empresas, antigos governantes e clubes de futebol, por exemplo, António Joaquim Piçarra assegurou que “a justiça tratará todos por igual”.

“Independentemente de raça ou sexo, de situação económica ou social. Qualquer que seja o percurso de vida dos envolvidos, todos terão de ser tratados de forma igual, com absoluta imparcialidade e com respeito pelos seus direitos individuais”, concluiu.

Antes da PGR e do Presidente do Supremo Tribunal, já tinha discursado o bastonário da Ordem dos Advogados, com o primeiro discurso da cerimónia. Guilherme Figueiredo deixou uma crítica aos custos e às taxas judiciais, dizendo que “a justiça neste Portugal de Estado de Direito democrático encontra-se e manter-se-á doente, enquanto não se adequarem as custas e taxas judiciais ao país real”. Para o bastonário, é claro que existe “uma justiça para ricos e uma justiça para pobres”.

Presidente da República recusa politização da Justiça

Marcelo Rebelo de Sousa, que encerrou esta abertura do ano judicial, lembrou o papel que cada um desempenha na promoção de “uma democracia melhor e de maior qualidade” e, consequentemente, de uma melhor Justiça, recusando a sua politização. “De todos nós depende evitar olharmos para a Justiça como se olha para a política partidária, com uma relação de amor-ódio,  despique social nas mais variadas áreas”, afirmou o Presidente da República, defendendo que não se devem “contabilizar condenações como se de um ato eleitoral ou de uma pugna ideológica se tratasse”.

Durante o seu discurso, marcado sobretudo por uma defesa da democracia, o Presidente pediu o cumprimento das leis, a “recusa da corrupção”, o “respeito dos outros e dos seus direitos”, lembrou a importância da independência dos tribunais e do Ministério Público, “essencial ao respeito dos magistrados que o integram”. Marcelo Rebelo de Sousa falou também na ainda a importância da Justiça, que deve ser considerada tão relevante como a “Educação, a Saúde, a Segurança Social, a ordem pública, a situação económica e financeira”. “De todos nós depende e respeitarmos e dar peso social à missão dos tribunais”, afirmou Marcelo.

Lembrando que se assinalam os 40 anos da adesão de Portugal à Convenção dos Direitos do Homem, apelou à “afirmação dos valores” e à “vontade de os fazer vingar na realidade” para as quais “este início simbólico” do ano judicial convoca. “Convoca-nos para a afirmação do valor cimeiro da dignidade da pessoa, de cada uma e de todas, dos seus direitos fundamentais, para a afirmação do estado democrático, para a afirmação do respeito da Constituição da República Portuguesa e das Leis que a aplicam, para a afirmação da separação de poderes, da independência de tribunais e juízes que são e devem ser titulares desses órgãos de soberania.”

Para Marcelo, “recordar estes e outros valores é ainda assumir o compromisso de tudo fazermos para que a qualidade da nossa democracia signifique mais e melhor vivencia dos valores na realidade social. Porque há democracias que se satisfazem com o mínimo dessa vivencia e outras buscam atingir expressões mais exigentes, mais qualificadas. Assim deve ser a nossa”. Uma “democracia e um estado de direito de que nos possamos orgulhar”.

Procuradora Geral da República insiste: composição do CSMP deve manter-se

Foi um dos primeiros pontos do discurso de Lucília Gago, o primeiro que faz na abertura do ano judicial. A Procuradora Geral da República aplaude o facto de ter sido aprovada, na generalidade, a reforma do Estatuto do Ministério Público, na Assembleia da República, mesmo sendo necessários “ajustes finais, designadamente os essenciais à plena consagração do paralelismo das magistraturas”, mas não esquece de lembrar que também é “absolutamente imprescindível” que “a autonomia do Ministério Público” seja “inteiramente preservada”, em matérias como a da composição e competências do Conselho Superior do Ministério Público”.

O tema é polémico e causou grandes desconforto, em dezembro do ano passado, depois de Lucília Gago ter ameaçado demitir-se caso a composição do CSMP fosse alterada. A posição de força foi tomada perante a alegada intenção do PS e PSD de avançar com mudanças que implicariam uma maioria de não-magistrados naquele órgão do MP. Discursando em Coimbra, a PGR aproveitou o momento para “deixar claro que qualquer alteração relativa à composição d Conselho Superior do Ministério Público que afete o seu atual desenho legal – designadamente apontando para uma maioria de membros não magistrados – tem associada grave violação do princípio da autonomia”.

PGR ameaça demitir-se caso seja alterada composição do Conselho Superior do Ministério Público

No discurso, Lucília Gago elogiou a criação do novo Departamento Central de Contencioso do Estado e Interesses Coletivos e Difusos, que vai dedicar-se a processos relacionados com “interesses da coletividade, saúde pública, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, direito do consumo e dos consumidores”, e que, segundo a PGR, trará inegáveis ganhos de eficácia e celeridade”, mas sublinhou que é preciso melhorar o desempenho dos meios humanos, nomeadamente com a formação específica em cada área.

A PGR enumerou, ainda, os principais desafios que o Ministério Público enfrenta, traduzindo as prioridades que se repetem de ano para ano: a cibercriminalidade, o crime económico e financeiro — este último, com “uma tendência de expressivo aumento” entre 2014 e 2018, defendendo Lucília Gago que não basta identificar e punir os fenómenos: é preciso evitar o enriquecimento ilícito através da prática do crime e garantir que é confiscado todo o património que lesou o Estado, com a recuperação de ativos.

O problema, diz a PGR, é que, em ambos os tipos de crime, faltam meios para os enfrentar, não só a nível informático, mas também técnico e humano.

“Apenas uma resposta qualificada e célere ao nível das perícias informáticas e contabilístico-financeiras permitirá uma prossecução eficaz das diligências investigatórias sem quebras na sua cadência e com significativos ganhos na almejada celeridade dos inquéritos”, acrescentou.

Ministra da Justiça: “Prudência, equilíbrio e rigor”

O barulho da manifestação dos funcionários judiciais, em frente ao edifício do Supremo Tribunal de Justiça, ganhou volume quando Francisca Van Dunem subiu ao púlpito dos discursos. E, logo no início, a ministra da Justiça falou do “contexto social contingente” em que acontece a abertura do ano judicial de 2019, numa referência clara aos protestos das várias organizações profissionais. Van Dunem diz que, quando “confluem variáveis políticas e expressões de exasperação de fundo sócio profissional”, é preciso manter os valores da justiça: “a prudência, o equilíbrio e o rigor”, com cada um a ocupar o lugar que lhe pertence:

“O Ministério Público decide ou promove com autonomia no quadro das suas competências de ação; os juízes fazem escolhas decisórias, com independência. Ao Parlamento e ao Governo cabem as definições políticas no quadro de participação de responsabilidades que a constituição define”, afirmou.

Mais à frente, haveria de voltar ao tema da necessidade de equilíbrio, garantindo que sabe das “necessidades de investimento em infraestruturas na área da justiça, dos tribunais aos estabelecimentos prisionais, passando pelos serviços de registo e notariado, pela Polícia Judiciária e pelos serviços médico legais”, mas lembrando também que é preciso “articular coerente e responsavelmente essas necessidades de investimento com as legítimas ambições das classes profissionais”.

Lembrando o apelo feito pelo Presidente da República, em 2016,”a um novo Pacto para a Justiça”, Van Dunem garantiu que “2018 foi o tempo de conhecermos a resposta a esse apelo”. Como prova disso, apontou o Acordo para a Justiça — um documento que resultou dos contributos dos representantes sindicais das magistraturas, Ordem dos Advogados, Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução e Sindicato dos Funcionários Judiciais — e a iniciativa do PSD intitulada Compromisso para a Justiça.

“O Governo esteve atento a todas as iniciativas que apontaram no sentido da necessidade de formação de consensos alargados e às propostas delas decorrentes”, garantiu a ministra com a pasta da Justiça, reconhecendo que nem todas avançaram ou porque não eram exequíveis ou porque não seguiam o programa político do Governo.

“Mas uma parte substancial das propostas inscritas no Pacto subscrito pelos agentes da justiça traduziam medidas cuja execução se revelou compatível com o Programa do Governo, sendo que algumas delas se encontravam, até, já em execução”, disse ainda.

Após enumerar uma série de iniciativas e documentos realizados pelo governo, Francisca Van Dunem defendeu que a “questão do segredo de justiça implica uma reflexão conjunta mais aturada, expurgada de perceções e fundada na análise do conteúdo e limites do interesse ou interesses protegidos pelo segredo e no modo de compatibilização desses interesses com interesses legítimos conflituantes”. A ministra da Justiça defendeu “o diálogo como via de construção de bases consensuais alargada” e elogiou o envolvimento dos responsáveis dos conselhos nos trabalhos preparatórios da revisão dos estatutos das magistraturas judicial e do Ministério Público.

Virando a página para o novo ano — “também um ano de balanço do que foi e ainda será possível alcançar nesta legislatura” —, a ministra apontou as prioridades do programa do Governo para a justiça: a melhoria da gestão do sistema judicial e a modernização dos modelos de organização de trabalho das secretarias; a atualização dos estatutos das magistraturas; a “capacitação dos recursos destinados à prevenção e repressão dos fenómenos criminais mais graves”; e o “robustecimento do sistema público de proteção jurídica aos cidadãos mais frágeis”.