“Carlos Kaizer [n.d.r. assim mesmo, com ‘z’] é um daqueles jogadores brasileiros desconhecidos no seu país mas que brilham no exterior. Kaizer chegou à Europa em 1986 para disputar o Campeonato da 3.ª Divisão de França pelo Ajaccio como avançado. No final da temporada 86/87, Kaizer foi o artilheiro da competição e o Ajaccio chegou à 2.ª Divisão, de onde não mais desceria nos oito anos que jogou pela equipa da Córsega. O passe de Kaizer pertence ao América mas o jogador não pode disputar o Campeonato Estadual por causa do atraso nas negociações. Com 31 anos, 1,84m e 80kg, o jogador vem treinando individualmente com o seu preparador físico e espera ser vendido no meio do ano, novamente para o futebol europeu. ‘Tenho propostas de duas equipas da Grécia, o Olympiacos e o Panathinaikos’, diz Kaizer, que ganhou este apelido ainda jovem pelos amigos verem no seu futebol semelhanças com o de Franz Beckanbauer. Carlos Kaizer foge da imagem típica do ‘boleiro’. Não usa gírias nem frases feitas e é capaz de falar sobre vários assuntos além do futebol. Esotérico, Kaizer acredita na força dos cristais e até o seu visual influencia a sua filosofia. Usa um brinco em cada orelha (‘para chamar energia’) e longos cabelos: ‘Uso cabelo grande para que não me toquem na cabeça. Ela é um dos pontos vitais do nosso corpo e não é qualquer pessoa que pode tocá-la. Para evitar que isso aconteça, digo que é para não desfazer o penteado'”.
Esta notícia acima replicada na íntegra é verídica. E há recortes de jornais dessa altura que o comprovam. Apareceu no final da década de 80 numa publicação do Rio de Janeiro, uma peça secundária na secção de desporto. E como esta há mais; antes, surgira também num cantinho da imprensa em papel carioca que uma citação de Carlos, El Loco: “Sou o melhor lateral da Argentina”. Mas é aqui que chegamos à fronteira entre o que é verdade e o que não passa de uma invenção se torna difícil de distinguir. Porque esta é a vida de Carlos Henrique Raposo, brasileiro de 55 anos que hoje é um personal trainer num ginásio exclusivo a mulheres (algumas culturistas). Esta é a vida de alguém que, ao longo de mais de duas décadas, ganhou um único troféu (e não material): “O maior futebolista de sempre que nunca jogou futebol”.
Ricardo Rocha, antigo internacional que passou pelo Real Madrid e pelo Sporting e que é amigo de Kaiser, não tem dúvidas – “Contra ele, o Pinóquio perdia”. “É pior do que cara de pau, esse rapaz é o maior 171 do futebol brasileiro”, acrescentou, numa alusão ao número do artigo do Código Penal do país que invoca o enganar de outras pessoas para benefício próprio. Mas esse testemunho é apenas um entre muitos de antigas glórias como Romário, Bebeto, Zico, Carlos Alberto Torres ou Renato Gaúcho, atual treinador do Grémio que passou pela Europa (Roma) e que também tinha fama de bon vivant. No final, todos utilizam a mesma expressão: “Mas é boa gente”. “Quando ouvi aquela história, achei que era impossível ser verdade. Fiquei espantado e, claro, muito interessado”, explica Louis Myles, produtor de grandes eventos desportivos para a BBC e autor do documentário sobre esta pitoresca figura. O lançamento, com muitas críticas positivas, ocorreu no Festival de Tribeca em abril deste ano, mas houve agora um novo boost com o anúncio da distribuição internacional do trabalho.
De origens humildes, nascido em Porto Alegre e adotado por uma família que vivia numa zona de favelas do Rio de Janeiro, Kaiser também foi aquele típico miúdo brasileiro que só queria andar na rua a jogar futebol com uns intervalos para entrar às escondidas no cinema sem pagar. No entanto, a certa altura percebeu que aquilo que verdadeiramente o apaixonava era o estilo de vida dos futebolistas, muito mais do que o jogo em si. Queria ter algum dinheiro, queria andar a sair à noite, queria conhecer mulheres mas também queria provar que alguém com um início de vida tão duro podia chegar a esse mundo que tem entrada reservada só para alguns. Enganou literalmente meio mundo, do Brasil ao México, passando pela Argentina e por França, e só em 2011 viu a sua história de charlatão revelada pelo programa Esporte Espetacular, da Rede Globo. “Nem dá para chamar ex-atleta, é sim um cara de pau e não tem vergonha de se mostrar”, dizia o jornalista. Kaiser só se ria.
“Queria ser jogador mas sem jogar. Jogos completos? Se tiver 20 ou 30 é muito porque todos os jogos saía machucado, até no treino se pudesse saía machucado. Como não havia ressonância, ficava muito tempo fora; depois, quando a coisa ficava mais pesada, tinha um dentista meu amigo que vinha com o atestado. Iam dizer o quê?”, admitiu. “Quando um treinador novo chegava e dizia que não ia ser opção, era o maior prazer que me podia dar. Se tenho vergonha do que fiz? Não, nenhuma. Os clubes já enganaram tantos jogadores que alguém tinha de ser o vingador deles”, acrescentou entre gargalhadas.
Como em qualquer plano, havia três princípios basilares para conseguir manter o status quo sem dar nas vistas: 1) todos os contratos tinham a duração de três a seis meses mas com o adiantamento do prémio de assinatura à cabeça – se começassem a duvidar mais cedo dos recorrentes problemas físicos, saía sem alaridos; 2) ter sempre uma boa relação com os presidentes e demais responsáveis do futebol, quase numa assunção do “filho” que precisava de ser protegido para poder ter sucesso naquela passagem; 3) ser amigo de alguns dos melhores futebolistas brasileiros, aproveitando o estrelato dos para poder ficar na sua sombra ao mesmo tempo que se tornava o rei do balneário pelas festas e boa disposição. Márcio Meira, ex-treinador do Fluminense, resumiu Kaiser numa ideia: “Sabia como convencer as pessoas. Conversando, ele rouba você”.
Como o tempo, muitas das histórias que foi contando tinham pontas soltas que, quando puxadas, conduziam à falta de verdade. Foi assim no Independiente, onde nunca ganhou a Taça Libertadores. Foi assim no Bangu, onde trocou o nome do treinador no dia em que teria sido expulso quando estava no aquecimento. Foi assim em muitos outros clubes que dizem não ter qualquer registo da sua passagem como futebolista. O certo é que a história de Kaiser deu um livro da autoria de Rob Smyth, que ouviu dezenas de pessoas que se foram cruzando com o futebolista-não-futebolista. E o livro deu um documentário, por Louis Myles. E estas são dez partes mais caricatas de alguém que, entre génio e charlatão, é descrito como corajoso e sem vergonha.
A adoção quando era bebé, a ida para o Rio de Janeiro e a entrada no Botafogo
Carlos Henrique Raposo nasceu em abril de 1963 em Porto Alegre mas foi adotado por outra família com apenas uns dias de vida. E existem duas histórias sobre o que terá sucedido: uma, a primeira que lhe contaram, onde a mãe biológica tinha pedido a alguém para que agarrasse nele uns minutos, desaparecera e a família ficara com ele; outra, que era filho de um político conhecido da cidade que tivera um caso com uma empregada que não podia ser assumido. Certo é que se mudou logo nessa altura para o Rio de Janeiro com a mãe, cozinheira, e o pai, que trabalhava numa empresa de elevadores, tendo sido detetado por dois observadores do Botafogo (que era o seu clube) num jogo de rua com dez anos. Foi convidado para fazer testes, ficou e teve a possibilidade de conhecer o seu ídolo, Jairzinho. Foi aí que ganhou a alcunha de Kaiser por causa de Franz Beckenbauer. Entretanto, aprendera Muay Thai para se poder defender no bairro pobre e problemático onde vivia.
O primeiro contrato após um golo decisivo, a ameaça de bomba e as boas notas
Quando era mais novo e estava nas equipas de formação do Botafogo, Kaiser era “mesmo” jogador. Com mais ou menos jeito do que os outros, estava na mesma linha. E teve o seu momento de glória quando apontou uma grande penalidade decisiva num torneio que juntava várias formações de miúdos em pleno Maracanã, o que lhe valeria mais tarde um contrato profissional com o conjunto do Rio de Janeiro, o primeiro. Na escola, conseguiu fugir das más notas que vinham a caminho antes do Natal com uma ameaça de bomba que resultou e atrasou a saída dos resultados para janeiro, podendo estar descansado na altura festiva. Mas as notas viriam mesmo a subir, como o próprio admitiria – sabendo do rumor de que um professor poderia ter-se envolvido com uma antiga aluna, “jogou” com a informação e acabou por “forçar” a melhoria do rendimento escolar.
Uma manobra com cachaça, a ida para o México e a perna ligada durante meses
Depois do Botafogo, Kaiser passou pelas camadas jovens do Flamengo. Aqui, toparam-no bem mais rápido mas, por gostarem da sua forma de ser, deixaram que continuasse a treinar com a equipa. Dois emissários dos mexicanos do Puebla estavam no Rio de Janeiro e tinham identificado Beijoca como possível reforço mas um outro jogador viria a despertar a atenção: Kaiser, que antes dessa sessão de reservas na Gávea tinha colocado cachaça na garrafa de um companheiro/adversário (além de lhe tirar o elástico dos calções). Chegado a um novo país, ficou surpreendido não só por passarem os habituais exames médicos mas também por acreditarem a 100% na lesão que o impedia de treinar. Um dia, lá foi para o relvado. Teve uma boa jogada, fintou dois defesas e quando ia chutar atirou-se para o chão agarrado à perna. Os mexicanos tentaram de tudo, entre gelo, anti-inflamatórios e pomadas, mas aquela perna que andava sempre ligada continuava a ser um problema. Quando percebeu que já desconfiavam, começou a namorar com a sobrinha do presidente. Acabou por ter permissão para regressar ao Rio de Janeiro para recuperar e foi treinando no América. No entanto, foi essa passagem pelo Puebla que lhe colocou uma certeza na cabeça que iria perdurar durante vários anos – Kaiser queria ter todas as regalias de um jogador de futebol… mas sem jogar.
Estava tudo a correr bem até perceberem que o telemóvel era um brinquedo
Era no Rio de Janeiro que se sentia melhor, mais à vontade e com maiores conhecimentos para ir organizando mais festas com mais amigos no mundo do futebol. Numa segunda passagem pelo Botafogo, era um problema andar sempre a fugir a treinos e jogos com problemas físicos na coxa, que por norma demoravam sempre 20 dias para ficarem resolvidos. Sendo que, e fez isso mais do que uma vez, chegava a perguntar a miúdos mais novos quanto ganhavam para dar o dobro e… sofrer uma entrada mais dura. Pelo meio, Kaiser costumava fingir que estava a negociar alguns contratos com valores milionários nas instalações do clube, aproveitando as folgas para passear em centros comerciais e distribuir camisolas da sua equipa no momento por algumas mulheres com quem se ia cruzando e que o próprio comprava nas lojas. O problema surgiu quando, certo dia, um elemento da equipa técnica percebeu que o telefone era um brinquedo e não havia ninguém do outro lado…
O campeão da Taça Libertadores que deixou de ser com um simples telefonema
No seu currículo, Carlos Kaiser colocou sempre uma passagem pelo Independiente em 1984, ano em que o clube argentino venceu a Taça Libertadores. Era uma espécie de cereja no topo do bolo na altura de apresentar o seu currículo e que lhe valeu ainda mais alguns clubes na longa lista de passagens (muitas sem fazer sequer um jogo). Mas como é que tinha chegado a uma equipa como esta? “Tinha um amigo, que era o Alejandro, que conhecia o Burruchaga. A seguir ao Maradona, era o melhor jogador argentino e jogava lá”, contou. No entanto, com apenas uma chamada e uma consulta dos arquivos o mito acabou por cair: por um lado, ninguém do clube tinha sequer memória da passagem de Kaiser pela formação de Avellaneda, muito menos de ter sido vencedor da Libertadores (o que só aconteceu duas vezes); por outro, aproveitou o facto de haver um médio nessa equipa chamado Carlos Enrique – hoje adjunto de Maradona – para dar gás à história, mesmo sem parecenças.
How could it be possible to have a 26-year career as a footballer without ever having played a match? Fact is certainly stranger than fiction in the crazy world of Carlos Kaiser. 398. Kaiser – The Greatest Footballer Never To Play Football; movie review https://t.co/iq1X2azibG pic.twitter.com/6KCuVorMvk
— neil white (@everyfilmneil) October 24, 2018
Um ramo de flores para a mulher do presidente, bolas para a multidão
Kaiser chegou ao Ajaccio, então nos escalões secundários de França, por indicação de Fabinho e recomendação de vídeos onde aparecia a marcar golos. Não conseguiu esconder a parte das lesões mas, mesmo que ilusório, chegava com um currículo ao clube que o fazia pensar para ele mesmo que era o grande momento de todas aquelas pessoas que nunca tinham visto um jogador daquele traquejo. E não falhou logo no primeiro dia: enquanto estava ser apresentado, pediu ao amigo também jogador que lhe encontrasse flores, saltou os painéis de publicidade, entregou um ramo à mulher do presidente e voltou ao relvado com uma bandeira da Córsega nas costas para delírio dos adeptos presentes. O pior viria a seguir, quando o roupeiro da equipa trouxe um conjunto de bolas e começou a colocar as mesmas perto da linha. Não lhe interessava muito que as pessoas vissem o que (não) era capaz de fazer e esquivou-se chutando todas as que encontrou para a bancada, como se fosse uma recordação de um dia memorável.
Como ser expulso no aquecimento e ainda acabar o dia a renovar contrato
Quando estava no Bangu, no final da década de 80, Kaiser tinha uma relação próxima com o presidente da altura, Castor de Andrade, personagem polémica conhecido por ser o rei do jogo ilegal. Num jogo em casa, no Moça Bonita, a equipa estava a perder 2-0 e o líder do clube deu indicação para que o avançado entrasse em campo. O técnico mandou o jogador aquecer. Como conseguiria resolver este problema? O brasileiro foi aquecer para uma zona perto da claque e, no meio de alguns insultos que ia ouvindo, acabou por saltar para a bancada e envolver-se numa confusão com adeptos. O árbitro, ao aperceber-se do que se estava a passar, parou o jogo e expulsou-o antes de poder entrar. No balneário, perante Castor de Andrade, explicou o que se tinha passado. “Presidente, Deus deu um pai a cada um. Eu perdi um, ganhei outro. Não gostei de ouvir que o meu pai é isto e faz aquilo. O senhor também é filho, o que sentiria? Mas sei que prejudiquei a equipa e, como o meu contrato termina daqui a 15 dias, aceito que me possa dispensar”, disse. E o que aconteceu? Renovou contrato por seis meses e foi aumentado.
A amizade com Renato Gaúcho, o capítulo mais sincero de uma história de mentiras
Agora os tempos começam a mudar mas, nos anos 80 e 90, era a coisa mais normal do mundo passar pelas praias de Copacabana às segundas-feiras e ver alguns dos principais astros das equipas do Rio de Janeiro em animados jogos de futvólei. Para Kaiser, mais do que um momento de curiosidade, era uma oportunidade. E lá calçava os seus Speedo e ia passear para aquela zona com a pinta de futebolista que também está a usufruir a sua folga semanal. Foi assim que conheceu grande parte dos jogadores das equipas cariocas, foi assim que passou muitos dias com o amigo mais próximo que ganhou no futebol: Renato Gaúcho. A primeira vez que se cruzaram foi em 1983, quando o Grémio jogou na cidade, mas foi a partir de 1987, quando o avançado com quem tinha parecenças físicas se transferiu para o Flamengo, que se conheceram e passaram a andar juntos. Ao ponto de, um dia, o ex-internacional ter sido barrado numa discoteca porque o Renato Gaúcho já estava no interior. “Como? O Renato sou eu!”, disse. E lá encontraram o outro Renato, Kaiser, numa mesa com mulheres e champanhe.
O segredo no Vasco da Gama, o budismo e o interesse do Louletano
Quando saiu do Fluminense, Kaiser conseguiu arranjar maneira de ir parar a outro clube grande do Rio de Janeiro, o Vasco da Gama. Foi aí que ouviu as palavras mágicas que tanto gostava: “Aqui você não vai jogar muitas vezes”. Mas havia uma razão para aquela contratação. “Pediram-me para cuidar de um atleta internacional que andava na má vida e envolvido em coisas pesadas, sabiam que tinha bom coração e queriam que ficasse encarregado por ele”, contou ao Maisfutebol em 2011. Em paralelo, e sem que os dirigentes soubessem (ou se sabiam, deixavam passar), era ele que organizava as grandes festas para os principais atletas do plantel, que lhe iam permitindo conhecer mais e mais pessoas no futebol. Nos anos 90, por altura do Mundial de 1994, tornou-se budista por influência de italianos que conhecera. “Quero que percebam os motivos que me levaram a mentir porque a pobreza da minha família atirou-me para um poço sem fundo e habituei-me a representar porque não me deixaram ser quem queria”, explicou o jogador que uma vez também esteve perto de jogar em Portugal: “Ia para o Louletano, do Algarve, mas ofereceram-me mais dinheiro nos Estados Unidos e acabei por ir para lá”.
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E, de repente, a participação num anúncio da Budweiser para os Estados Unidos
Em vésperas de Campeonato do Mundo nos Estados Unidos, em 1994, e perante um “mundo novo” que se começava a abrir no país com o futebol, a Budweiser quis ir ao Brasil gravar um anúncio e contactou o Fluminense, tendo chegado ao número de Marcelo Campello, antigo preparador físico do clube e… um dos amigos mais antigos de Kaiser. Bónus? Mil dólares, qualquer que fosse o tempo de aparição no produto final do trabalho. A tática voltou a ser a mesma – tudo o que envolvesse muito contacto com a bola, fintas ou remates, passava ao lado; numa parte de plano mais fechado onde a única coisa que era necessário fazer um cabeceamento de forma triunfal, chegou-se à frente. E foi assim que chegou aos Estados Unidos como um ídolo que nunca foi. Bebeto, por exemplo, nem queria acreditar no sucedido.