O Observador publica esta sexta-feira um artigo de opinião de José Maria Seabra Duque que resume, de certa forma, algumas críticas que foram feitas nas últimas semanas aos nossos trabalhos especiais sobre abusos sexuais na Igreja portuguesa. No Observador, estimulamos o escrutínio de todas as pessoas e instituições. Por isso, encaramos com naturalidade que também o nosso trabalho seja escrutinado. Mais: acreditamos que a discussão pública é a melhor forma de estimular a relação de transparência entre um jornal e os seus leitores. Por isso, fica aqui a resposta a algumas dúvidas.

A hierarquia da Igreja denunciou os abusos e colaborou com as autoridades?
Infelizmente, na maior parte dos casos não denunciou nem colaborou, como se percebe lendo os trabalhos especiais do Observador.

No Funchal, o bispo D. Teodoro Faria (o mesmo que, em 1993, testemunhou a favor do padre Frederico) recebeu uma primeira denúncia contra o padre Anastácio Alves. O que fez? Limitou-se a mudar o sacerdote de paróquia na Madeira, uma prática habitual na Igreja durante décadas sempre que havia suspeitas de abusos. Depois, o bispo recebeu uma segunda denúncia. O que fez? Novamente, mudou-o de paróquia, desta vez para a Suíça. Por fim, o novo bispo do Funchal, D. António Carrilho, recebeu uma terceira denúncia. O que fez? Finalmente, suspendeu o padre de funções para investigar. E o que não fez? Não denunciou o caso à polícia. Hans Zollner, o jesuíta que o Papa Francisco encarregou de preparar o inédito encontro no Vaticano sobre abusos sexuais, é muito claro numa entrevista ao Observador: a Igreja tem “uma obrigação moral” de reportar os casos às autoridades. O resultado de todo este comportamento da hierarquia da Igreja na Madeira é que o padre Anastácio Alves está desaparecido.

Na Golegã, os responsáveis da Igreja souberam de um primeiro abuso cometido pelo padre António Júlio num acampamento de escuteiros, mas, mesmo assim, não o denunciaram às autoridades. Perante essa passividade, houve um segundo caso de abuso e a hierarquia da Igreja voltou a não o denunciar. No total, passaram-se seis semanas até a PJ saber do caso pela imprensa. Aliás, o Ministério Público admitiu mesmo acusar os responsáveis da Igreja do crime de omissão de denúncia.

No Fundão, o sacerdote que ocupava o cargo de diretor da escola onde estudavam os alunos vítimas de abusos do padre Luís Mendes soube do que se passara três semanas antes de o sacerdote ser detido pela PJ — e não denunciou o caso. Pior: não só não houve participação às autoridades como, numa reunião com pais dos alunos do seminário, o bispo da Guarda se mostrou zangado por a Igreja não ter sido alertada antes da denúncia à PJ.

Apenas no caso de Vila Real a Igreja foi de facto mais dura com o padre Pedro Ribeiro do que o tribunal que o julgou — e a denúncia dos abusos partiu da própria Igreja.

O papel de encobrimento da Igreja na maioria dos casos de abusos conhecidos é de tal forma incontestável que até a Conferência Episcopal Portuguesa admitiu, depois da publicação dos trabalhos do Observador, que “aqui ou ali” pode não ter existido a “devida investigação”. Mais: antes de partir para o Vaticano, onde está a participar na cimeira convocada pelo Papa, D. Manuel Clemente encontrou-se finalmente com uma vítima de abusos e reconheceu: “Se fomos parte do problema, agora temos de ser parte da solução”.

Achar que a Igreja não foi parte do problema, ou, pior, que nem sequer há um problema na forma como a hierarquia encarou os abusos em Portugal é um desafio aos factos e à verdade.

Os casos de abusos conhecidos são poucos e não fazem com que a Igreja se distinga de outras instituições?
O problema não é apenas haver ou não abusos. Nem apenas quantificá-los, se bem que isso é muito importante. Nem é apenas saber se, além da Igreja, também há abusos em escolas, em empresas ou em famílias. O problema é também a forma como a Igreja, enquanto instituição, lida com esses abusos: se os ignora ou se os denuncia; se os esconde ou se os investiga; se os desculpa ou se os pune. E, aí, a Igreja falhou. Falhou no mundo inteiro e, como não poderia deixar de ser, tendo em conta que se trata de um problema sistémico, falhou em Portugal.

As histórias contadas até agora são todas antigas ou conhecidas?
Na realidade, não são. Logo o primeiro artigo do Observador sobre o tema tratava um novo processo judicial contra o padre Anastácio Alves na Madeira. Mas, de qualquer forma, o Observador não encara este trabalho como um concurso em que o objectivo é encontrar o maior número de casos possível. O que está em causa — e esteve na génese destes trabalhos — é perceber como a hierarquia da Igreja se comportou perante processos concretos. É isso que tem mobilizado a discussão sobre este tema em todo o mundo. Com estes trabalhos especiais do Observador ficámos a saber, com rigor e detalhes, qual foi a reação da hierarquia da Igreja quando foi confrontada com processos de abuso sexual. E não foi boa.

Ao criar uma linha de contacto para potenciais vítimas, o Observador está a estimular a calúnia?
Não, está a estimular a verdade. Como se percebeu com todo este processo, por vezes as vítimas de abusos demoram várias décadas até ganharem coragem para falar. Vivem numa das situações mais dolorosas que se pode imaginar. Por isso, criar um endereço de email ou disponibilizar um número de telefone é o mínimo que um órgão de comunicação social responsável pode fazer para ajudar a que quem tem algo a dizer partilhe a sua história.

Esse método faz, de resto, parte das melhores práticas jornalísticas seguidas em todo o mundo. Em Espanha, por exemplo, o jornal El Pais fez o mesmo a propósito da sua investigação aos abusos na Igreja. Nos Estados Unidos, jornais como o The New York Times fazem o mesmo regularmente. E, em Portugal, o Observador também usou o mesmo método noutras investigações, como por exemplo quando incentivou os leitores a contarem as suas histórias que mostravam onde o Estado estava a falhar, fosse em hospitais ou em escolas.

Naturalmente, todos os contactos são filtrados, analisados e investigados. Sobre o resultado desta linha de contacto criada pelo Observador saber-se-á mais nas próximas semanas e meses. Em poucos dias, já nos chegaram vários testemunhos relevantes, mas este é um trabalho complexo e delicado, que exige tempo e rigor. Ora, tempo e rigor é algo que o Observador tem e cultiva: não se apressa nem se precipita.

As reportagens do Observador são o resultado de uma agenda escondida contra a Igreja?
Quem ler os trabalhos do Observador percebe que eles não foram escritos para provar qualquer tese prévia. Aliás, é suficiente lembrar isto: o título de uma das histórias já contadas pelo Observador é “Em Vila Real, a Igreja foi mais dura com o padre do que o tribunal”. Se o Observador quisesse sacrificar a verdade a favor de uma agenda oculta bastaria, por exemplo, não contar essa história.

Culpar o mensageiro é um reflexo habitual em assuntos delicados como este. Sabendo disto, o próprio Papa Francisco agradeceu recentemente aos meios de comunicação social que procuraram “fazer ouvir as vozes das vítimas”. E ainda esta sexta-feira, na cimeira do Vaticano, o cardeal colombiano Salazar Gómez pediu aos bispos e à hierarquia da Igreja para não atacarem os meios de comunicação que expuseram as histórias das vítimas e as condutas erradas da Igreja: “Temos de reconhecer que a imprensa, os media e as redes sociais têm sido muito importantes para nos ajudar a enfrentar a crise em vez de a evitarmos. Os meios de comunicação fazem um trabalho valioso neste aspeto, um trabalho que tem de ser apoiado”.

O Observador está a insinuar que há mais casos, mesmo que não saiba nada sobre eles?
O próprio Papa Francisco lembrou recentemente uma estatística reveladora: apenas 50% dos casos de abusos são denunciados. Isto quer dizer uma de duas coisas: ou Portugal é uma anormalidade estatística, ou, de facto, há uma altíssima probabilidade que existam entre nós casos não conhecidos. Em declarações ao conservador jornal espanhol ABC, Hans Zollner, o jesuíta que o Papa encarregou de preparar a cimeira no Vaticano, lembrou: “Onde dizem ‘Aqui não há abusos’ isso significa que aí não se fala sobre o tema. Há abusos em toda a parte”. Como o Observador já disse, a investigação jornalística continua.