Na semana em que estreou o seu novo programa na TVI, Ricardo Araújo Pereira teve uma séria concorrente na corrida pelo melhor sketche humorístico. Catarina Martins, uma atriz talentosa, deliciou os leitores do Observador ao rejeitar a ideia de que o Bloco de Esquerda (BE) seja um partido de extrema-esquerda. “Isso é um insulto”, atirou uma felina e orgulhosa Catarina. E porquê? Porque a “extrema-esquerda está associada a totalitarismos, a perseguição, a ódio. Não encontram absolutamente nada disso no BE”, sentenciou, consciente da sua infalibilidade, como costuma acontecer com todos os bloquistas que têm autorização para falar em público. Em nome da “raiz das lutas”, “esquerda radical” é o posicionamento correto, diz Catarina.

Deixando de lado o abstracionismo da “raiz das lutas” que quase exige um doutoramento em marxismo-leninismo e em trotskismo para uma correta interpretação, e colocando em prática o pluralismo de opiniões que o Bloco diz defender, devo dizer que discordo da coordenadora do BE por quatro razões:

1. Pela história. Não é possível encarar um partido que nasceu essencialmente da aliança de duas forças de extrema-esquerda criadas à volta de versões da ideologia que mais terror e empobrecimento espalhou pelo mundo como algo diametralmente oposto. É verdade que o mundo (e alguns bloquistas) evoluíram mas o marxismo, seja na sua versão trotskista (LCI — Liga Comunista Internacionalista e, mais tarde, PSR — Partido Socialista Revolucionário), seja na sua versão marxista-leninista/maoísta (a UDP — União Democrática Popular), continua bem presente no Bloco de Esquerda. Os fundadores e principais doutrinadores do Bloco, como Francisco Louçã e Luís Fazenda, tinham, e continuam a ter, o marximo como ponto de partida para a sua ação política. Catarina Martins é uma mera seguidora desse legado, como demonstrou no discurso que fez na Conferência “Karl Marx 200 anos” promovida pelo Bloco, onde defendeu uma “mobilização para a construção de um futuro que supere o capitalismo”. O Bloco enquanto partido de extrema-esquerda, aliás, é um bom exemplo daquela frase de Lenine: “À minha esquerda, ninguém”.

Além de uma raiz ideológica, o Bloco é também herdeiro do radicalismo do “poder popular” defendido pela extrema-esquerda do Verão Quente. Foi esse sectarismo da LCI (a organização que está na origem do PSR) e da UDP e de tantos outros grupúsculos de extrema-esquerda que fomentou boa parte da violência política do Verão Quente de 1974/75 — e levou à politização das Forças Armadas, através da organização “Soldados Unidos Vencerão”, para fomentar um golpe de Estado contra as forças democráticas. É sempre bom recordar estes factos históricos para enfatizar que o Bloco não tem na sua origem uma ideia de liberdade, pluralismo e democracia. E que mesmo depois da queda do comunismo por toda a Europa de Leste, só muito a contra-gosto os partidos que estiveram na origem do Bloco aceitaram as regras da democracia representativa e parlamentar — tudo numa linguagem tão codificada que é preciso comprar um dicionário de dialética marxista para interpretar a mensagem.

2. Pelo presente. O Bloco continua a ter o mesmo objetivo do PSR e da UDP: a destruição do capitalismo. Citando Francisco Louçã, “o capitalismo é profundamente predador e destruidor das capacidades humanas e, sobretudo, é destrutivo do ponto de vista social. O capitalismo é destruição”. Para o Bloco, após o final da II Guerra Mundial, o capitalismo não trouxe ao Mundo Ocidental um progresso económico e social invejável que foi conseguido com a liberalização dos principais sectores de atividade e um incremento fortíssimo de trocas comerciais entre os diferentes países. O que teve como consequência um crescimento exponencial do poder de compra das populações, um investimento diversificado em infraestruturas, uma melhoria grandiosa na esperança média de vida devido ao progresso científico e melhores cuidados de saúde e a construção de um Estado Social.

Nada disso. O Bloco não só recusa ver as conquistas do capitalismo, como rejeita as duas instituições que mais fizeram pela paz na Europa: a União Europeia e a NATO. Neste último caso, a retórica dos bloquistas contra a aliança militar de que Portugal é membro fundador em nada difere da luta da LCI, PSR ou UDP: a NATO é um braço armado do imperalismo norte-americano.

3. Pelos regimes e partidos internacionais que apoia. Como partido anti-americano que é, o Bloco tende a apoiar todos os regimes que sejam críticos do “imperialismo” dos Estados Unidos. E é aqui que a bota não bate com a perdigota. Ou seja, a narrativa interna do Bloco insiste na tecla da defesa da “democracia”, do “pluralismo” e da “liberdade de expressão”, mas o apoio que dá a regimes como o venezuelano faz com que tal narrativa não tenha fundamento.

O Bloco apoiou desde o início o regime criado por Hugo Chávez em 1999. Precisamente por aplicar uma revolução económica assente na nacionalização dos meios de produção — a mesma receita que o BE defende para os sectores estratégicos da economia portuguesa. Chavéz começou por nacionalizar as posições que diversas petrolíferas internacionais tinham no sector do petróleo, destruiu ou influenciou o máximo que pôde o sector privado presente na economia venezuelana e lutou contra a liberdade de imprensa, promovendo o encerramento de meios de comunicação social críticos para o seu poder.

Os resultados desta revolução tornaram-se claros pouco antes de Chavéz morrer. Entre 2013 e 2018, a riqueza da Venezuela diminuiu cerca de 50%. A hiperinflação atingiu os 10.000% de taxa de inflação em 2018. Mais de 87% da população está abaixo do limiar da pobreza, com a fome e a subnutrição a afetar uma população em que cada cidadão terá perdido, em média, sete quilos. Mais de 2,3 milhões, cerca de 7% da população, decidiram emigrar. E a corrupção, que sempre existiu desde o início do regime chavista, atingiu praticamente todas as estruturas do poder, incluindo os presidentes Chavéz e Maduro. Hoje, a Venezuela é dos países mais corruptos do mundo, segundo a ONG Transparência Internacional. Basta ler estes três exemplos práticos com origem em Portugal e no caso BES: aqui, aqui e aqui.

Por puro oportunismo, o Bloco aparece hoje a criticar duramente Nicolas Maduro mas se pesquisarmos nesse site fascinante chamado esquerda.net (a página oficial do Bloco de Esquerda, equivalente ao “Avante” do PCP) descobrimos os elogios do BE a Chavez aquando da sua morte em 2013 por ter criado um “modelo de desenvolvimento alternativo” e por uma “ luta muito importante contra o imperialismo e contra o FMI”. Mas também lemos opiniões mirabolantes de dirigentes do Bloco a arrasar a “imprensa mainstream” que “não é imparcial” por relatar as sucessivas ações de Nicolas Maduro para se perpetuar no poder. Aliás, a dirigente Irina Castro não tinha qualquer dúvida em afirmar em agosto de 2017 que a “esquerda” (leia-se a extrema-esquerda) tinha de reconhecer que “a realidade venezuelana neste momento é a de um golpe de estado promovido pelas forças oligarcas translatino-americanas com o desígnio imperialista dos Estados Unidos da América e o apoio da União Europeia.” Como vemos, as mentes conspirativas da velha extrema-esquerda do Verão Quente ainda estão bem vivas no Bloco.

Muito menos jovem mas igualmente outro grande parceiro do Bloco é Jean-Luc Mélenchon, o trotskista que teve 19,58% nas últimas presidenciais francesas. Mélenchon é a cara do Bloco — anti-União Europeia, anti-Nato, defensor da reforma aos 60 anos, da taxação de quase 100% dos salários 20 vezes superiores ao salário médio, da redução do horário de trabalho para 32 horas, etc. E foi também um grande defensor do regime venezuelano e do ex-presidente Rafael Correa (Equador) — que que está a ser investigado por suspeitas de corrupção por alegadamente ter recebido luvas da construtora brasileira Odebrecht. Vale a pena ler este artigo escrito por Mélenchon a propósito das críticas que jornais franceses faziam em 2012 a Rafael Correa, que tinha permitido a Julian Assange um refúgio na embaixada equatoriana de Londres, para percebermos o fanatismo e a noção de liberdade de imprensa de um dos grandes amigos do Bloco.

4. Conclusão. Não, o Bloco de Esquerda não é um partido de esquerda radical. É um partido de extrema-esquerda que quer destruir o capitalismo (e não reformá-lo), que vê o mercado como algo que destrói as relações humanas, que apenas vê o Estado como o único proprietário legítimo para promover um progresso económico igualitário e efetivo, que diz defender a democracia multipartidária mas que se recusa a ver legitimidade política em qualquer outra ideia ideológica que não seja marxismo. E que promove a intolerância política contra quem não comunga das suas ideias.

Percebe-se a intenção de Catarina Martins: posicionar o Bloco como um partido mais moderado e menos ortodoxo que o PCP. Mas certo é que tal posicionamento está única e exclusivamente relacionado com “experiências concretas e internacionais”, como diz a líder do Bloco. Veja-se o caso da Venezuela, por exemplo. Se por razões de coerência e ortodoxia política, o PCP continua a apoiar o regime chavista, o Bloco deixou de apoiar por puro oportunismo político. O Bloco não renega o seu apoio original nem as ideias da revolução bolivariana. Renega os resultados da fome, da pobreza extrema e da destruição da economia venezuelana que eram mais do que previsíveis face ao que o BE também defende para Portugal: a nacionalização dos principais sectores de atividade económica do país. Por que razão os resultados serão diferentes em Portugal do que foram na Venezuela — e do que foram em todos os países onde as teorias marxistas foram aplicadas?