No Natal, as famílias juntam-se à volta da lareira para assistir aos clássicos que odiamos adorar e que as televisões insistem em repetir todos os anos: “Sozinho em Casa”, “Música no Coração” ou “O Amor Acontece”. É verdade que na Páscoa a tradição cinematográfica é menor; mas isto não impede os canais de televisão de passar os filmes que também já conhecemos de uma ponta a outra. Mais ou menos bíblicos, com mais ou menos catolicismo, mais ou menos factualmente corretos, revemos “Ben-Hur” ou “A Paixão de Cristo” enquanto comemos as tão cristãs amêndoas de chocolate.

Mas será que os filmes da Semana Santa são historicamente corretos? “A Bíblia” – que conta com Diogo Morgado no papel de Jesus Cristo – propõe-se a representar fielmente as histórias e epístolas do livro sagrado. Mas será que as segue à risca? Fomos à procura dos erros históricos de três filmes que passam sempre na televisão durante a semana da Páscoa.

“Ben-Hur”

Este é talvez o maior clássico da Páscoa. Filme de 1959, tem umas retumbantes 3 horas e 44 minutos e venceu uns históricos 11 Óscares. A história de Judah Ben-Hur serve de fio condutor para uma película que não é sobre Jesus Cristo: mas sim sobre o tempo de Jesus Cristo. O filme desenrola-se aproximadamente durante o tempo de vida de Jesus e Judah encontra-o por duas vezes, estando até presente entre a multidão que assiste à sua condenação e que acompanha o caminho até à cruz.

Mas uma das cenas mais marcantes de “Ben-Hur” é depois do protagonista ser tomado como escravo. Propriedade dos romanos, acaba no fundo de um galeão a remar, em conjunto com dezenas de outros escravos, para levar a embarcação avante. A filmagem irrepreensível e a estética de toda a cena tornam-na uma peça maior do cinema mundial. Mas, historicamente, está incorreta.

Os romanos nunca utilizaram escravos para fazer navegar os galeões. De acordo com o Dicionário Clássico de Oxford, “os navios romanos não eram usados para comércio de escravos e a tripulação era composta por homens livres que recebiam um salário”. Os galeões tinham remadores próprios que eram contratados apenas para esse serviço e os escravos só eram utilizados em caso de grande urgência: e, mesmo aí, eram libertados primeiro.

“A Paixão de Cristo”

Em 2004, o filme realizado por Mel Gibson não agradou a toda a gente: ou melhor, não agradou a quase ninguém. Foi criticado pela extrema e exagerada violência e até se fizeram alegações de anti-semitismo. Ao contrário de em “Ben-Hur”, aqui é Jesus Cristo a figura principal e os últimos dias antes da sua morte são o plano de ação. “A Paixão de Cristo” tem muitas leituras horizontais da Bíblia e os erros começam logo no início.

No princípio do filme, Jesus está a rezar no Jardim do Getsémani. Aparece uma figura um tanto ou quanto andrógina – que é supostamente o Diabo – que lhe atira uma serpente. Jesus pisa-a e este episódio é retratado como uma tentação, principalmente pela referência à serpente, numa alusão ao Génesis e a Adão e Eva. Mas as escrituras não dizem nada sobre Jesus ter sido tentado enquanto orava no Getsémani nem sobre ter encontrado alguém.

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Uma das cenas que provocou mais dúvidas nos milhões de curiosos que correram para as salas de cinema é quando fica implícito que Jesus inventou a mesa de jantar. Sim, é isso mesmo. Jesus de Nazaré, que, tal como o pai, aprendeu o ofício de carpinteiro, constrói uma mesa. Maria, a mãe, comenta que é muito alta e que as pessoas terão de comer de pé. Jesus responde: “Eu vou fazer cadeiras”. E Maria atira: “Ninguém se vai habituar a isso”. Pois é, afinal, o filho de Deus também era um inventor. Escusado será dizer que não há qualquer menção a esta “invenção” na Bíblia ou em qualquer documento histórico.

Por fim, a crítica mais vezes tecida a “A Paixão de Cristo” é a extrema e exagerada violência. O episódio da Paixão de Cristo e o seu caminho até ao Calvário são retratados na Bíblia com especial atenção à mensagem e aos atos de solidariedade e amor que acontecem ao longo do percurso: Verónica, Simão, as mulheres. Ao invés disso, Mel Gibson foca-se única e simplesmente na tortura física e leva-a ao extremo, tornando o filme num banho de sangue.

“A Bíblia”

Chegou em 2014 e teve um especial impacto no nosso país porque Jesus era Diogo Morgado. Ou melhor, Diogo Morgado era Jesus. Começou como uma mini-série do canal História mas acabou por ter tanto sucesso que foi adaptado aos cinemas. Jesus Cristo é uma figura central, é certo, mas “A Bíblia” retrata as histórias e epístolas mais importantes do livro sagrado, desde a entrega de Noé até ao Apocalipse de João.

Ainda que o filme tenha recebido vários elogios pela factualidade histórica, existem alguns erros. Um deles está relacionado com os três reis magos: tal como aconteceu com tantas outras coisas, a versão bíblica da chegada dos reis magos a Belém e ao sítio onde Jesus tinha nascido foi adulterada e a história que todos conhecemos não é necessariamente a mais real. De facto, reis magos visitaram o recém-nascido filho de Maria e José; mas a Bíblia nunca indica quantos são. O filme apresenta-nos três e, além disso, coloca-os a chegar em conjunto com os pastores – no livro sagrado, os reis magos perderam-se pelo caminho e chegaram semanas depois de Jesus ter nascido.

Outra das falhas histórias é a representação da captura de João Batista. No filme, João é preso e morto por estar a dizer a uma multidão que um Messias chegou para salvar o povo judeu da opressão dos romanos. Na Bíblia, João Batista é detido depois de gritar a quatro ventos que o rei Herodes traiu a mulher com a esposa do irmão – mas nunca executado.

Por fim, um simples problema de localização: quando Jesus é tentado pelo Diabo no deserto, é levado para o pináculo de um templo e incentivado a saltar. Em “A Bíblia”, é-lhe pedido o mesmo, mas num penhasco.