Pedia à Dra. Rita Magalhães Colaço que transmitisse a Sua Excelência o Presidente da República os votos que fazemos dos maiores sucessos no exercício deste novo mandato presidencial desejando-lhe que mantenha as características que os portugueses tanto apreciaram no seu primeiro mandato e que de uma forma tão expressiva votaram na renovação para o novo mandato”

António Costa deseja isto a Marcelo Rebelo de Sousa, mas na realidade o desejo é todo seu. A tentação presidencial de dificultar a vida ao Governo num segundo mandato em Belém é nota recorrente entre socialistas que conhecem bem a história do Presidente Mário Soares e do primeiro-ministro Cavaco Silva. Foi uma coabitação longa, de dez anos entre duas figuras de lados opostos do espectro político, que António Costa antevê que possa voltar a verificar-se agora, com ele a primeiro-ministro e Marcelo a Presidente. A previsão temporal que faz será essa, mas o desejo que expressa é que ela não se assemelhe ao que aconteceu então, com Soares a andar pelos país em Presidências Abertas de má memória para o Governo de Cavaco. É um recado que enviou do Congresso do PS para Marcelo através da representante da Presidência que tinha da plateia, Rita Magalhães Colaço. Um formato que serviu mais para socialista ouvir do que para Marcelo reter, já que entre socialistas surgiram críticas à relação que o chefe do Governo tem com o Presidente e sobretudo ao facto de não ter existido uma alternativa a Marcelo nas últimas eleições. No palco do Congresso ouviu-se esta crítica pela voz de Ascenso Simões, mas é receio de grande parte dos socialista que foi, na verdade, para quem Costa falou tentando provar que está atento às rasteiras que possam surgir de Belém.  Afinal, o principal português que apreciou as características do primeiro mandato de Marcelo foi o próprio Costa.

Ao longo destes seis anos o PS tem tido a honra de chefiar um Governo que tem mantido um intenso debate e relação com a Assembleia da República. Naturalmente, não havendo maioria tem sido possível desenvolver um diálogo profícuo com os diferentes partidos políticos e um diálogo institucional entre o Governo e Assembleia. Creio que todos devemos estar orgulhosos de depois de ano e meio com um período tão exigente com sucessivos estados de emergência, com a forma tão cooperante e responsável como todos cooperaram para enfrentar esta pandemia.

Num congresso em que a geringonça quase pareceu esquecida, foi preciso Costa usar o discurso final para puxar pelos antigos parceiros, já em pleno período de negociação orçamental. Primeiro, com a referência aos “seis anos” em que o Governo tem mantido o tal debate profícuo com o Parlamento — é uma obrigação para qualquer Governo minoritário que pretenda manter-se no poder, mas durante os tempos de geringonça essa relação foi particularmente intensa. E não é só à esquerda que o primeiro-ministro tem de agradecer: quando Costa especifica o “orgulho” que tem na cooperação dos partidos durante o período de crise pandémica, até terá motivos para dirigir o agradecimento ao PSD, que desde o início anunciou a sua disponibilidade para colaborar com o Governo em tempos difíceis — o que facilitou a governação de Costa, mas não necessariamente a liderança de Rui Rio no PSD (o que dá motivo duplo para agradecer).

Saudar todos os partidos políticos aqui representados. Aos que cabe ser oposição e construírem alternativa à alternativa de esquerda que temos a honra de ter constituído e liderado desde 2016. E também aos que temos tido o gosto desde 2016 de prosseguir uma caminhada, às vezes mais conjunta outras menos, e é com gosto particular que vejo aqui presentes dois dos interlocutores mais exigentes mas também mais produtivos com quem temos construído estes bons resultados para o país e para os portugueses”.

Depois da primeira referência aos antigos parceiros, Costa foi ainda mais claro: a geringonça ainda vive, pelo menos a julgar por este discurso em que se congratulou, no presente, por “liderar” a alternativa de esquerda no país. Foi aí que dedicou uns quantos elogios aos parceiros com quem teve o “gosto” de prosseguir essa caminhada. Quanto ao Bloco de Esquerda, que o PS classifica como “desertor” desde que votou contra o Orçamento atual, não houve espaço para hostilizações: Costa fez por resumir essa rutura a uma espécie de acidente de percurso. E, diante de Jorge Costa (BE) e Vasco Cardoso (PCP) — duas das caras principais das negociações orçamentais dos últimos anos –, fez questão de mostrar abertura para com os dois parceiros: são dos “mais exigentes”, mas também “dos mais produtivos” interlocutores que Costa tem. O primeiro-ministro troca, desta vez, a técnica da dramatização pela imagem de abertura e disponibilidade negocial — as próximas semanas provarão se se trata de retórica ou realidade.

Temos as políticas certas e os melhores candidatos para gerir juntas e municípios. Desde 2013 somos o maior partido autárquico, quer nos municípios quer nas freguesias. Mas o próximo mandato autárquico é de especial importância. É o mandato em que vai entrar em pleno vigor o maior esforço de descentralização de competências e de recursos que foi feito desde a primeira geração de competências do poder local democrático (…) E os municípios vão ser parceiros centrais e agentes na primeira linha na execução do Plano de Recuperação e Resiliência em várias das áreas mais importantes onde há recursos mobilizados”

A menos de um mês das autárquicas, este Congresso teve o objetivo central de acordar o partido para o combate eleitoral para o qual parte ganhador. E é um capítulo de peso para o líder que foi autarca durante sete anos na Câmara de Lisboa, uma vitória importante e robusta para o PS nesse ano de 2013, já que o então líder António José Seguro vivia um período de secura, na oposição ao Governo, e aspirava por uma prova de vida do partido que pudesse pressionar Passos Coelho com uma leitura nacional dos resultados. O país autárquico mudou de cor e a hegemonia local do PS tem-se mantido. E Costa continua a precisar dela, agora por dois motivos acrescidos. O primeiro é que tem uma regionalização na calha para 2024, depois de concluído o processo de descentralização do poder que se concluirá no ciclo que vai começar depois de 26 de setembro. Em segundo lugar, se o PS mantiver o poder local nas mãos, mantém também consigo o envelope financeiro associado ao Plano de Recuperação e Resiliência, o PRR, a que Costa já chamou de “bazuca”, “vitamina” e “trampolim”. E esta é uma oportunidade dourada que o líder socialista não esconde querer ver o PS a liderar: “Temos meios para investir, vamos investir bem porque ninguém nos perdoará se desperdiçarmos um cêntimo que seja do dinheiro que temos disponível para investir”. Os apelos à mobilização autárquica foram, por isso mesmo, sonoros neste Congresso.

Esta é uma oportunidade extraordinária, mas que levou 25 anos a formar. Não foram os cinco dias e quatro noites que levámos a negociar a bazuca. Foram 25 anos de investimento das famílias, de investimento e esforço dos próprios, do coletivo. Como podemos agora não dizer que a primeira das nossas prioridades seja garantir a esta geração a continuidade e as condições para poderem viver aqui em Portugal”. O que temos de garantir a esta geração é a sua autonomia: habitação e trabalho digno sem precariedade.

Se a bazuca europeia era o grande trunfo que Costa trazia para este congresso — em que foi constantemente elogiado pelo “respeito” que conquistou em Bruxelas –, o primeiro-ministro também fez questão de sublinhar que as “oportunidades” que aí veem não são produto exclusivo do dinheiro europeu. O primeiro-ministro foi recuperar os créditos do PS — recuando até aos tempos de António Guterres e da “paixão pela Educação” que o antigo chefe de Governo usava como lema — para garantir que os resultados na qualificação dos jovens de hoje demoraram “25 anos a formar”. Costa acrescentou uma camada de dramatização ao discurso quando afirmou que a “primeira das prioridades” é garantir a esta geração, a mais qualificada de sempre, as condições para poder viver em Portugal. A referência não é inocente e vai direta ao encontro do suposto convite que Pedro Passos Coelho teria feito a alguns setores para “emigrarem” — uma afirmação que Passos sempre disse não passar de um “mito urbano” (existem algumas declarações que foram interpretadas nesse sentido, mas em resposta a perguntas específicas sobre o assunto). E, se Costa faz questão de marcar sempre que pode as diferenças entre a resposta que o Governo de Passos deu à anterior crise e a que o seu Governo está a dar agora, aqui toca num ponto sensível para ilustrar esse contraste.

O que tem de ficar na lei é que o princípio é que quem trabalha para as plataformas digitais não é um empresário em nome individual, não é um prestador de serviços. É um trabalhador por conta de outrem e tem o direito a um contrato com todos os direitos (…) E as empresas de trabalho tenporário são muito importantes para permitirem e darem flexibilidade às outras empresas, mas sempre que o Estado recorrer a elas só poderá aceitar que se tratem de trabalhadores com um contrato de trabalho efetivo de trabalho com a empresa que disponibiliza este tipo de serviços”

Um tema caro à esquerda, com que Costa abriu a parte da intervenção que dedicou ao lançamento de medidas que o Governo quer que avancem no próximo anos, seja por via do Orçamento do Estado, seja por via das alterações à legislação laboral que estão a ser cozinhadas no Parlamento. Mais condições para trabalhadores com vínculos precários, nomeadamente os que trabalham em plataformas digitais, assegurando que passem a ter contratos e sejam considerados obrigatoriamente como trabalhadores por conta de outrem. Além disso, os serviços disponibilizados por empresas de trabalho temporário só podem ser contratualizados pelo Estado caso os seus colaboradores tenham vínculo efetivo. António Costa está em negociações com a esquerda e a tentar tocar onde mais sensibilidade pode provocar, depois de no ano passado ter experimentado, pela primeira vez desde que está no cargo, a aprovação de dois orçamentos sem conseguir o pleno de esquerda que conseguira nos anos seguintes. Estes dois temas fora, de resto, os dois que Catarina Martins focou, no Congresso do Bloco, e colocou como essenciais pata um acordo num pacote de combate à precariedade.

Estamos dispostos a fazer também do lado do Estado o nosso esforço para melhorar o rendimento disponível das jovens gerações. É por isso que vamos alargar as experiências do programa Regressar e do IRS jovem. No que toca ao programa Regressar, vamos prolongá-lo por mais três anos: para 2021, 2022 e 2023 (…) E quanto ao IRS Jovem, vamos alargá-lo para que cubra também os rendimentos do trabalho independente e vamos alargar de três para cinco anos.

Continua o desfiar de medidas e aqui Costa fala diretamente aos mais jovens e à tal geração mais qualificada de sempre. Ataca em várias frentes: de novo, a mexer com as memórias do Governo de Passos, decidindo alargar o programa Regressar para quem quiser voltar ao país; para os trabalhadores mais jovens, um alargamento das isenções; para os que querem constituir família — com “todo o tipo de formação” — mais “dez mil lugares de creches” no ano que vem e uma dedução maior para quem tem filhos, que passa a abranger crianças até aos seis anos, e não apenas até aos três. As boas notícias são para os mais novos — o líder da JS, Miguel Costa Matos, foi imediatamente filmado a aplaudir com entusiasmo — mas também acenam à esquerda: a pasta das creches é essencial para as negociações, sobretudo com o PCP. O partido já tinha dado passos nesse sentido na negociação deste Orçamento, negociando a gratuitidade para o 1º e 2º escalões, mas ainda reclama a concretização completa da medida.

Não queremos fazer como outros fizeram e que esta medida tenha efeito regressivo do ponto de vista fiscal. Sabemos que muitas famílias, por terem rendimento inferior ao mínimo de existência, não são tributadas, mas também têm filhos e merecem ter apoios pelos filhos que têm. E não tendo coleta, não há dedução à coleta, por isso, para essas famílias que não vão poder deduzir à coleta, o Estado pagará uma garantia infantil para garantir que nenhuma terá menos de 600 euros por filho a partir do segundo filho”

Uma nova prestação social surge para evitar um efeito regressivo que o PS de António Costa tanto tem contestado face a uma medida nesta área do Governo PSD/CDS. A batalha do PS contra o quociente familiar continua hoje em dia — mesmo depois de já ter acabado, logo em 2016, com esta criação do Governo anterior que visava as famílias numerosas — e ficou claro na referência de Costa quando fala “nos outros” que fizeram uma medida com efeito regressivo. Ou seja, a fórmula da direita, no entender do PS, acabava por resultar num benefício superior para as famílias com rendimentos mais elevados. Ora, na mesma medida, aumentar deduções fiscais é um benefício que deixa de fora quem não tem rendimentos suficientes sequer para pagar IRS, assim, a ideia do PS passa por uma nova prestação para acautelar esse efeito.

Garantir o futuro passa obviamente por garantir as melhores condições possíveis para que esta geração que já se formou possa encontrar o seu futuro em Portugal. Mas esta é uma batalha que não está concluída. Já temos 45% da população com ensino superior concluído, mas temos a meta de até 2030 termos 60% da população acima dos 30 anos com uma frequência no ensino superior. Nenhum de nós tem direito a ignorar as graves consequências que tiveram para a atual geração de alunos, o sacrifício que foi necessário impor, com o encerramento por duas vezes do ensino presencial e a interrupção pontual de uma turma ou de um aluno. Todos estamos gratos ao extraordinário esforço que professores, escolas e famílias fizeram para de um momento para o outro se conseguirem adaptar.

O foco nos jovens continua: o “esforço de qualificação tem de prosseguir” e é por isso que Costa tem dado tanta importância ao último acordo assinado na concertação social, que promove a formação profissional. Por outro lado, Costa volta a puxar dos galões do PRR para falar do programa Impulso Jovem — que até 2025 vai assegurar “um aumento de 40%” dos jovens que vão graduar-se em matemática, ciências e tecnologia — e da modernização das escolas profissionais, também prevista no documento entregue em Bruxelas, com uma dotação de 750 milhões. E os milhões não pararam de chegar, pelo menos da boca de Costa: haverá mais 900 para investir no programa de recuperação de aprendizagens, em resposta aos atrasos provocados pela pandemia, e um reforço das bolsas de ação social escolar para facilitar o acesso aos mestrados. Um reforço “extraordinário”, assegurou o primeiro-ministro, mas motivado pela tal prioridade aos jovens, que tem de ser concretizada agora que há dinheiro.

Temos de olhar com muita atenção para as crianças e a chaga inaceitável numa sociedade decente que é a pobreza infantil. Todos os estudos estimam que são precisas 5 gerações para uma família de condição de pobreza extrema poder alcançar o rendimento mediano. A única forma de travar esta fatalidade é quebrar esta sucessão geracional de pobreza através do combate à pobreza infantil. Ja provámos que era possível, desde 2015 iniciámos uma medida de reforço significativo do abono para todas as crianças em condição de extrema pobreza ou em risco de pobreza (…). É por isso que iremos alargar estas medidas ao longos dos dois próximos anos, a todas as crianças independentemente da sua idade.

Mais promessas em grande escala: Costa assume o objetivo de “erradicar a pobreza infantil” e concentra-se na experiência da geringonça, com os abonos negociados na altura com os parceiros à esquerda, para garantir que o “alargamento” dessa medida é necessário. Segundo o anúncio de Costa, os abonos para crianças em risco de pobreza e pobreza extrema, “independentemente da idade”, serão aumentados. A medida não só deverá agradar à esquerda como é um dos únicos anúncios, no meio deste rol de medidas, que surpreenderam os antigos parceiros.

Este é um partido onde, para irritação de muitos, não temos problemas internos, por isso podemos dedicar-nos ao que importa: os problemas do país, das portuguesas e dos portugueses, porque é para isso que servem os partidos políticos”

Depois de ter passado o pré-congresso a alinhar nomes para a sua sucessão no PS e a alimentar um debate que, ao mesmo tempo atira para as calendas porque não sabe ainda se vai recandidatar-se em 2023, António Costa surge a estranhar a estratégia política que ele mesmo montou nos bastidores. Com Carlos César articulou o esquema de ter ali, na Mesa do Congresso, todos os nomes de possíveis sucessores de que se falavam e ainda mais um, em entrevista ao Observador colocou Marta Temido na posição de não poder descartar uma hipótese adensando a confusão. Mas na prática, as lutas internas estão adiadas, por força do próprio calendário de Costa, e o partido segue unido, garante, para “acabar de vez com a pandemia” e para “avançar com a recuperação económica” do país. Por agora, o facto de ficar no congelador pode não criar grandes problemas à linha de sucessores que se prepara — Pedro Nuno à cabeça –, mas a espera também pode deixar “irritados” dentro do próprio PS. São cenas para um próximo capítulo socialista.