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Paula Cordeiro é a autora do livro "Vida Instagramável"
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Paula Cordeiro é a autora do livro "Vida Instagramável"

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

Paula Cordeiro é a autora do livro "Vida Instagramável"

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

“O Instagram levou-me a um momento de verdadeira loucura. Só me apercebi quando me tiraram o brinquedo”

No novo livro, sobre amor-próprio e também validação social, Paula Cordeiro relata como sobreviver à era digital. Esta é a história da professora universitária que tentou e conseguiu ser influencer.

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“Vida Instagramável” é uma história de autodescoberta, mas também uma espécie de diário de likes e de engagement. Acima de tudo, é o relato de como Paula Cordeiro tentou e conseguiu competir no universo dos influencers, mas com um custo. Cansada de uma vida marcada por compromissos institucionais, a docente universitária (ensina comunicação digital no ISCSP), consultora de rádio e agora ex-provedora do ouvinte da RTP, depositou as esperanças num projeto editorial chamado Urbanista, cuja página de Instagram tornou-se, a certa altura, um problema.

Em entrevista ao Observador, Paula Cordeiro conta como, na casa dos 40 anos, deixou-se levar pela espiral de validação e competição naquela rede social, como chegou a perder horas para tornar o feed mais atraente e como criou uma personna para encarar de frente o glamour do Instagram. A experiência — numa tentativa de provar a sua multidimensionalidade e quebrar preconceitos instituídos — levou-a a querer uma vida “instagramável”, cheia de histórias para contar e partilhar com os milhares de seguidores.

Numa lógica de missão, e muito a lembrar o documentário “Fake Famous”, que explora universo dos influncers e expõe alguns dos seus segredos mais obscuros, Paula Cordeiro recorre à escrita para explicar na primeira pessoa qual o impacto que a luta diária pela atenção dos outros tem na nossa vida e como despertou desse mundo e voltou a encontrar-se.

Por esse motivo, aceitou fazer parte de uma experiência social, ao publicar imagens da sessão fotográfica do Observador, para esta entrevista, na respetiva conta de Instagram — três fotografias foram partilhadas a 5, 8 e 9 de abril na sua página, sem qualquer referência ao jornal, e são agora publicadas neste artigo com as respetivas interações (gostos e comentários). Numa das imagens partilhadas, a académica fala sobre as poses mais instagramáveis e como por trás de uma fotografia em que surge “super confiante” estão outras mil que assinalam o rasto de tentativas falhadas. Terminada a experiência “ninguém deu pela diferença”, garante Paula ao Observador — os comentários são prova de que os seguidores assumiram as fotos como conteúdo próprio (os devidos créditos foram posteriormente acrescentados). “O engagement foi muito bom porque fui humana e mostrei a minha vulnerabilidade, fiz perguntas à audiência”, esclarece, afirmando que, no seu caso, as imagens publicadas servem como complemento ao texto, dado que optou por transformar o Instagram numa espécie de micro blogue.

“O jogo do Instagram é duro, muito desgastante. Influencia-nos, perturba-nos. Curiosamente, a esta distância, é interessante verificar que as pessoas acreditam no que estão a ver porque, enquanto passava de blogger a influencer, as fotografias da minha cozinha fizeram alguns seguidores pensar que tinha um restaurante e outros perguntar se era chef de alimentação natural. Também me questionaram sobre as aulas de ioga, porque queriam praticar comigo, e eu não sou professora de ioga. Em resumo, somos o que publicamos.” (“Vida Instagramável”, página 202)

O livro está à venda desde o dia 6 de abril por 14,40 euros

O livro relata um processo de mudança e dá a entender que tudo começa com uma crise de identidade…
É mesmo isso. É difícil definir exatamente o momento em que as coisas acontecem, porque não tens uma crise de um dia para o outro. Da mesma maneira que não mudas de um dia para o outro. Eu tinha 38 anos quando percebi que as coisas como estavam não estavam fixes. Não estava a gostar e não tinha nada de que me queixar: tinha a família que continuo a ter e, do ponto de vista profissional, estava com um crescimento fulgurante em termos de carreira. O problema é que não era aquilo que queria. Era a família, isso estava certo, estava bem com o meu marido, com a minha filha, com o facto de ser mãe. Mas tudo à volta me parecia errado, nem aí me sentia 100% bem. E sentia-me culpada por questionar o que estava bem. Então, tive uma reunião muito dura, muito complicada — na altura era consultora na área da rádio — e foi o que fez o clique…

Essa reunião foi um “abre olhos”?
A reunião foi muito difícil, chorei umas quatro horas seguidas, à vontade, a ponto do meu marido não saber o que fazer. Eu dizia “Deixa-me, isto depois passa”. Nessa altura pensei “Algo está errado”. E porque é que estava errado? Por uma razão muito simples: o que sempre quis fazer na vida foi escrever e fazer rádio, e o que estava a fazer era escrever artigos e relatórios científicos, e a dizer aos outros como é que se fazia rádio. Quando percebi que era este o problema… Não encontrei imediatamente uma solução, mas pensei “Então é isto que está errado!”. Houve um segundo momento importante. Na altura trabalhava muito, muito mesmo, e tinha uma senhora que ia lá a casa dar uma ajuda, principalmente com a roupa. Um dia ela está com uma blusa na mão e pergunta “Paula, esta blusa é do roupeiro de fim de semana ou de semana?”. Caiu-me a ficha: como assim, tenho dois roupeiros? Ela de fora percebeu que eu tinha duas identidades: ao fim de semana era a pessoa que sou e durante a semana vestia aquelas roupas que eram adequadas à professora universitária, à pró-reitora, à provedora do ouvinte [da RTP]. Caiu-me tudo ao chão.

Isto foi em que altura?
Aos meus 38 anos, em 2015.

Estando esse mal-estar identificando, como é que a resposta foi parar ao Instagram?
Não foi. Não foi, mas foi. Nessa altura, como me sentia tão infeliz, uma coisa que encontrei para desanuviar foi a corrida. Vinha exatamente para aqui [em Belém, junto ao rio] depois de deitar a minha filha, por volta das 20h30-21h. Escolhia uma playlist e corria para… exorcizar os demónios todos. Foi também nessa altura que o Instagram começou a aparecer e comecei a publicar fotografias dos pés da corrida, etc. Comecei a ver que outras pessoas faziam isso de uma forma mais coerente, provavelmente até já de uma forma estratégica, e pensei: “Se elas fazem, também posso fazer. Se calhar, até posso ser instagrammer como estas mulheres e encontrar aqui uma alternativa e tentar mudar de vida”.

"Isto foi tudo, no fundo, responsabilidade de uma fulana numa agência. Fui falar com eles para pedir ajuda para alavancar o Urbanista, para o dar a conhecer, e a resposta foi: 'Pois, mas a Paula não tem audiência'. (...) A seguir disse-me uma coisa que me ficou atravessada: 'Pois, mas a Paula já tem 40 anos…' Isto é que motivou o resto." 

Mas era uma forma de escape?
Sim, era. Nessa altura acreditava piamente que queria deixar todos os trabalhos que tinha e começar de novo porque ainda não tinha percebido que precisava de mudar a forma como vivia a minha vida. Não era largar o emprego, nem nada disso. Mas nessa altura pensava: “Vou deixar tudo, vou começar de novo, se calhar posso ser instagrammer, começo a trabalhar com marcas e a fazer conteúdos…” E corria, corria, que nem uma doida. Em 2015 criei o Urbanista, num momento em que estava a terminar o primeiro mandato de provedora do ouvinte da RTP e estava, no fundo, a preparar a minha saída. “Vou sair, vou ter um projeto editorial online e vou canalizar os meus esforços também para o Instagram”. Agora, à distância, sei lá o que é que pensei que ia fazer no Instagram. Um mês ou dois depois de criar o Urbanista, recebo um telefonema a dizer que a RTP queria reconduzir-me no cargo de provedora do Ouvinte. Pensei: “Então e agora?”. Já tinha criado e comunicado o Urbanista. Ficou em stand by durante dois anos.

Não podia ter um projeto editorial em simultâneo com o cargo de provedora do ouvinte?
Poder, podia. Se fosse hoje dizia: “Não gostam, ponham à beira do prato”. Mas, nessa altura, estava neste processo de perceber quem era e o que queria fazer da vida. E ainda estava muito permeável à pressão social. E a pressão social diz que o provedor do ouvinte não anda de calças rasgadas, que o provedor do ouvinte não dança no “Nos Alive”, mesmo estando acompanhado do seu marido. O provedor do ouvinte, supostamente, é uma pessoa em fim de carreira com mais de 60 anos, do sexo masculino. Eu tinha 38, era mulher e, portanto, não encaixava no padrão. Se fosse juntar a isto um blogue e um Instagram. Hoje saberia lidar, na altura achei que não. Pensei: “Também não sei muito bem como é que isto se faz, vou aproveitar este tempo para descobrir”. Só que arrastei-me um bocadinho no cargo, de junho até fevereiro de 2017. Por isso é que só em fevereiro de 2017 é que o Urbanista arrancou a sério. E nesse período já tinha levado “nãos” de agência, já tinha levado respostas de marcas que não gostei de ouvir, já tinha recebido propostas que pensei “endoideceram”.

©ipaulacordeiro_

Continuou a produzir conteúdos nessa fase?
Fui produzindo, mas de forma muito discreta, tudo sempre com muito cuidado para não ferir suscetibilidades. As pessoas até achavam engraçado: “Ah, ela tem uma cena, tem um blogue.” Mas o que queria fazer, na verdade, era um podcast. Queria que o Urbanista fosse um podcast, mas aí achei que não seria muito coerente eu, provedora do ouvinte, ter um podcast. Esses dois anos foram assim de experiências. Mas isto foi tudo, no fundo, responsabilidade de uma fulana numa agência: fui falar com eles para pedir ajuda para alavancar o Urbanista, para o dar a conhecer, isto já no final do segundo mandato. Fui falar com uma agência — queria ganhar alguma notoriedade para que o meu projeto ganhasse força e seguidores, para o conseguir rentabilizar com as marcas — e a resposta da agência foi: “Pois, mas a Paula não tem audiência”. Juro que olhei e pensei: “Se tivesse audiência, não estava aqui, não precisava de uma agência de comunicação”.

Aí, apresentou-se pelo Urbanista blogue ou pelo Urbanista Instagram?
Não, pelo Urbanista blogue, um blogue que tinha Instagram. Nessa altura, o que fazia era distribuir o conteúdo do Urbanista através do Facebook e do Instagram. Basicamente, usava o Instagram para gerar tráfego para o blogue. E a agência disse-me: “Pois, a Paula não tem audiência”. Brilhante conclusão amiga, é por isso que cá estou. A seguir disse-me uma coisa que me ficou atravessada: “Pois, mas a Paula já tem 40 anos…” Isto é que motivou o resto. O pior que me podem dizer é “Não, isso não é possível fazer” e eu saber que é possível fazer e saber como se faz. “Tu um dia vais engolir essas palavras”, pensei. Ela diz-me que no mínimo preciso de 10 mil seguidores e mais de 30 mil para começar a interagir com as marcas. “Vais ver que chego aos 10 mil seguidores em menos de nada e vais ver que antes dos 10 mil seguidores já vou estar a trabalhar com marcas” [simula o discurso interno]. Tudo o que aconteceu a seguir foi por causa desta conversa.

Despoletou aí qualquer coisa.
O meu sentido de competição.

Mas foi o facto de terem criticado a sua vontade e a sua idade que motivou a projeção no Instagram?
Pensei “Espera aí que já te lixo. Preciso de ter 10 mil seguidores no Instagram? Então, vou trabalhar para ter 10 mil seguidores”. Continuei a produzir o conteúdo no blogue só que alterei a estratégia no Instagram. Fiz vários testes no Instagram, segui todas as regras, adotei a postura do “Agora sou blogger”, correu bem. A seguir “Agora sou influencer”, correu ainda melhor. Depois foi “Agora sou influencer de comida saudável”. Chegaram ao ponto de perguntar onde era o meu restaurante. A seguir foi “Agora sou influencer do ioga, sou a influencer que viu a luz quando encontrou o ioga”. Foi verdade.

Foi seguindo as tendências todas?
Sim, fui.

Mas com um pé de fora ou deixou-se levar por isso?
As duas [coisas]. O que é engraçado neste percurso é que, à medida que me ia descobrindo e mudando a minha vida, ia refletindo isso no Instagram. Esta minha mudança era reflexo do que se passava no Instagram. Via as tendências, ia absorvendo-as, ia adotando-as. A questão da alimentação não foi exatamente assim, teve que ver com saúde. Há aqui uma interligação, não se consegue dizer “A Paula viu as tendências e adotou-as e aquilo começou a fazer parte da vida dela” ou “A Paula adotou novos comportamentos e refletiu-os no Instagram”. Foi uma interligação tão grande, tão grande, que é impossível de separar.

"Sou uma pessoa tímida por natureza, reservada, portanto, construí uma personna para o Instagram e, na maior parte das vezes, era mesmo em esforço que fazia aquilo."

Isto começou com uma crise de identidade. O facto de se expor no Instagram não piorou, de alguma forma, essa crise?
Não, o que me desorientou foi outra coisa. A questão das tendências, adotei-as para a minha vida em bom. Lá está, quando decidi mudar de alimentação, não foi porque ficava bem no Instagram, decidi fazê-lo porque precisava e porque descobri que esse seria um caminho para melhorar a minha vida. Fiz todo o caminho das pedras para descobrir como é que me devia alimentar, o valor nutricional dos alimentos e como é que eles se ligam entre si. O problema foi outro, teve que ver com a questão da validação. Sou uma pessoa tímida por natureza, reservada, portanto, construí uma personna para o Instagram e, na maior parte das vezes, era mesmo em esforço que fazia aquilo. O esforço era ainda maior porque ninguém sabia. O meu marido, durante muito tempo, achou que eu tinha flipado da cabeça para decidir fazer isto. Estava sempre a dizer que me apoiava mas, ao mesmo tempo, a julgar-me pelo tempo que perdia sem ter retorno.

Decidi descobrir como é que isto se fazia, mergulhei nisto a fundo, segui todas as técnicas, as boas e as más, vi como é que isto funciona para provar à outra que ela não tinha razão. E para provar ao mundo que, sim, é possível uma mulher com 40 anos fazer aquilo que lhe dá na veneta e continuar a ser boa professora e a ter boas avaliações. É possível ser multidimensional. O contexto universitário e profissional no qual sempre me movi é… parece que não, mas a rádio é muito conservadora e muito masculina. As pessoas não aceitam que sejas bom a fazer duas coisas muito diferentes entre si e era contra isso que também lutava. Acredito que boa parte do sucesso relativo, obviamente, do Urbanista resulta de lutar tanto contra este preconceito sobre o qual ninguém fala, é um preconceito que afeta não afetando, que molda a tua vida.

Paula Cordeiro, autora do livro "Vida Instagramável"

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

Molda a nossa vida e mete-nos em caixas?
Numa caixa da qual supostamente não se pode sair. O meu objetivo era provar que podes estar nas caixas que quiseres e continuares a ser um bom profissional.

O burnout em que se foi “abaixo das canetas”

Para provar isso o que é que deu por si a fazer?
Dei por mim a fazer merda, asneira da grossa, porque deixei-me envolver de tal forma na ferramenta. Porque o Instagram… as pessoas pensam “Ah e tal o algoritmo”. A construção do Instagram não existe para manipular aquilo que pensas, mas sim o teu comportamento. E tem um efeito viciante que não é o estar a ver o que se passa em scroll. O efeito viciante da plataforma é o facto desta se basear numa lógica de jogo em que, dependendo da tua performance, te dá mais ou menos likes. E por mais que queiras desconstruir como é que a plataforma em si te manipula, não consegues. Da mesma maneira que fiquei “Ai caraças, agora é que te vou mostrar”, quanto mais o algoritmo me dava para trás, mais tentava descobrir o que é que estava a fazer menos bem. Foi isso que me levou abaixo porque fiquei… Não sei se é dependência, nem sei que lhe nome dar. Tive momentos de desespero, momentos de não dormir a tentar perceber o que é que estava a falhar naquela estratégia. A Sofia [sócia] acompanhou-me indiretamente já na fase final. As horas que passava a construir o feed para ver que foto ficava melhor numa lógica de estética, de harmonia, o cuidado em cada texto, a procura das hashtags, a edição das imagens, a procura dos melhores filtros. Isto levou-me a um momento de verdadeira loucura do qual só me apercebi quando me tiraram o brinquedo.

Quem é que tirou o brinquedo?
Eu tive um burnout e ninguém sabia que esse burnout derivava do Instagram. As pessoas só me viam a trabalhar muito.

"As horas que passava a construir o feed para ver que foto ficava melhor numa lógica de estética, de harmonia, o cuidado em cada texto, a procura das hashtags, a edição das imagens, a procura dos melhores filtros. Isto levou-me a um momento de verdadeira loucura do qual só me apercebi quando me tiraram o brinquedo."

Teve um burnout por causa do Instragam?
Não sei, não sei se foi só o Instagram. De facto, tinha uma vida profissional muito cheia e o Urbanista, mais o Instagram, ocupava-me bastante tempo. Para tentar gerir tudo — ser boa mãe, ser boa profissional e estar a desenvolver o projeto — isto foi acumulando e… Aos 42/43 anos fui-me abaixo nas canetas porque fiquei mesmo muito doente e aquilo não passava. Muitas vezes o burnout ataca-te no teu ponto mais fraco: o meu foi sempre as vias aéreas superiores, o sistema respiratório, porque sofri muitos anos de sinusite. E tive um ataque de sinusite… nunca tinha estado assim na minha vida. Quer dizer, estive três semanas doente e com antibióticos e não passava. Cheguei ao ponto em que não conseguia respirar. Quando fui ao médico, o papel com a receita dizia burnout.

Estávamos em cima do mês de agosto, não tinha férias marcadas, não tinha nada e os meus pais e o meu marido marcaram férias à última e fomos para Cuba, para Cayo Coco. Chego ao hotel, já pronta para tirar fotos para o Instagram, não havia internet, tinha que se pagar e, mesmo pagando, as páginas não carregavam, as pessoas estavam sempre a reclamar. O meu marido disse “Não pago internet nenhuma, vim para descansar”. Estive três dias em abstinência total, em desespero porque comecei a fazer — a loucura — comecei a gravar stories para depois publicar quando voltasse e fazer de conta que [a viagem] era naquela semana porque lá não tinha internet. Ao fim de três dias caiu-me a ficha e pensei “A sério que estou a fazer isto?”. Então, pousei o telefone, não quis saber dele. Mas peguei na máquina fotográfica e andei com o meu pai a tirar fotografias. Poses de ioga, poses daquilo, para depois usar [no Instagram], para ter conteúdo bonito e inspiracional nas Caraíbas. Foi quando percebi que se calhar tinha um problema: estava ali naquele paraíso, com a minha família, de férias. O Instagram não me paga nada, nem as marcas, já percebi como o negócio funciona, não vou fazer disto vida, o que é que estou a fazer?

Mas sente que, de alguma forma, estava dependente ou mais suscetível aos likes?
Muito.

Publicava uma fotografia e ficava a ver quantos likes caíam?
Sim, sim. Sempre soube que a primeira hora do Instagram é determinante, então, na primeira hora era interação, interação, interação [bate sucessivamente com o dedo no ecrã do telefone]! Ali a fazer o trabalhinho. A questão é que não estava consciente do que estava a fazer. Agora sei que, se ao fim de uma hora a coisa não correr bem, vou ter de trabalhar a dobrar, em comentários e em likes para provocar o engagement, para levar as pessoas à minha fotografia, mas faço-o de forma consciente. Ainda a semana passada tive uma fotografia para aí com 50 likes.

Agora faz-lhe menos diferença?
Não gosto, ninguém gosta [de ter poucos likes numa fotografia], mas também tenho consciência de que a tal foto que tem 50 likes tem umas chávenas de café. Se fosse uma foto minha se calhar pensava… isto não está a correr bem. Mas agora é diferente, já despi a personagem. Demorei um ano a fazê-lo, já despi completamente, agora sou muito eu.

©ipaulacordeiro_

Mas consegue ter uma relação saudável com o Instagram? Pergunto porque continua a publicar conteúdos.
Agora tenho. Agora consigo ter porque pedi ajuda: a Sofia ajuda [aponta para a sócia], quer a definir a estratégia, quer a definir as publicações. Se for preciso substitui-me, se sentir que estou a resvalar… ela [estala os dedos] “Alerta!” e assume o comando. Gosto de escrever para o Instagram, gosto do formato de escrita porque é muito parecido com o formato da rádio, tens de ser muito sintético e direto e ter conteúdo. Esse desafio eu gosto, acho que é um desafio bom. Agora estou muito mais preocupada com aquilo que tenho para dizer do que com aquilo que tenho para mostrar. Com isto aprendi a ter um olhar para o mundo que é um bocado mais instagramável, mais editado. Fazer uma foto hoje é uma coisa perfeitamente natural, sei quais são as posições que melhor funcionam, sei qual é o meu melhor lado e isso já acontece de forma muito natural. Faço-o porque tenho de fazer, porque tenho um livro para promover. Quando cheguei aos 10 mil seguidores estava pronta para fechar a porta e fiz um post a dizer “Acabou”. Foi quando percebi que afinal tenho aqui uma comunidade.

Foi por isso que escreveu o livro?
Foi.

No livro chega a a falar da “fraude” e do aparente “dinheiro fácil” deste universo. Sente que tem a “missão” de mostrar como o Instagram consegue manipular as nossas vidas?
Durante este ano fui revelando alguns aspetos do livro e fui percebendo que as pessoas não sabem o que está por detrás do Instagram, não sabem como e porquê foi criado, não sabem como funciona desde que o Facebook o comprou, não sabem o quão fácil é ter um bot a deixar likes e comentários para que o teu perfil cresça. Para cresceres 10 mil seguidores num ano tens de estar cerca de 4 horas por dias na aplicação a criar conteúdo e a interagir. Quem tem uma profissão e um trabalho não tem 4 horas do seu dia para fazer isso.

É muito comum comprar-se bots?
É. É. Há dados que provam que as maiores contas têm [bots]. De vez em quando o Instagram faz uma limpeza e lá desaparecem uns quantos milhares de seguidores de algumas contas. É muito fácil. Escreves “Comprar likes Instagram” e aparece todo o tipo de serviços. Usei um muito interessante que funciona da seguinte forma: não compras seguidores, não compras nada, mas sim um serviço que simula a tua presença no Instagram, que deixa likes nas contas e nas hashtags que defines e faz seguir outros perfis de acordo com o que já definiste. Depois, segue esses perfis durante 12, 24, 36 ou 48 horas. Se esses perfis não te seguirem de volta tens a opção de, no fim destas horas, deixares de os seguir. Porque não pode haver um desequilíbrio entre o número de pessoas que te seguem e o número de pessoas que segues.

Isso é mesmo real?
É. A primeira coisa que muitas marcas vão fazer é ver se tens isto equilibrado. Há dois desequilíbrios maus: quanto tens 10 mil seguidores e segues 500 pessoas ou quando tens, por exemplo, 1000 seguidores e segues 5 mil. O ideal é teres sempre mais seguidores do que aquelas pessoas que segues.

Para chegar às marcas e consequentemente ao dinheiro?
Sim, mas também às pessoas porque, não é por mal, mas nas redes sociais nós funcionamos em rebanho e, como tal, há 90% de maior probabilidade de deixarmos um like numa fotografia que já tem muitos likes.

"Aquilo é tão glamoroso, uma realidade alternativa. Dás por ti a olhar para o mundo e só vês as coisas numa lógica instagramável. E queres que tudo na tua vida seja instagramável para teres histórias para contar. Às vezes não tens. Quando começas a viver a tua vida para que esta seja instagramável, algo se passa e isso tem de parar."

A Paula sentiu diferença de tratamento à medida que os seus seguidores foram aumentado?
Sim e não. Estava com o objetivo de trabalhar com as marcas, mas sabia que isto era um projeto que tinha princípio, meio e fim. Portanto, não estava disponível para fazer tudo, à vontade não é à vontadinha. Tenho uma reputação a manter, quero entrar de cabeça erguida na faculdade e não pensarem que enlouqueci de vez. Enlouqueci só um bocadinho, não completamente [ri-se]. Havia coisas que estavam completamente fora de questão e que eu jamais faria.

Como por exemplo?
Por exemplo… Uma marca que não tivesse absolutamente nada que ver comigo. Tive a sorte de nunca ser convidada assim para coisas muito fora e as que eram completamente fora recusava. Sempre fui bem tratada, mas apercebi-me de coisas como as diferentes listas.

Como assim?
Há listas de influenciadores que são convidados para o evento, há listas de influenciadores que são informados do evento e há uma outra lista, que acho ridícula, de influenciadores que recebem informação do evento que já aconteceu. Passa na cabeça de alguém que vá publicar uma fotografia de um evento no qual não estive e não fui convidada? Se estas agências acham que isso acontece, são estúpidas. É só a pessoa sentir-se deste tamanho [gesticula com as mãos]. Quando recebi um email desses, olhei e pensei… Senti-me tão pequena. O erro é de quem enviou, isto é abaixo de cão, é tratar mal as pessoas.

Neste meio é fácil atribuir-se importância e significância à dimensão do convite?
Sim, sim, completamente. Depois passei para o outro lado, a trabalhar com as marcas na produção da própria marca, e faz-se diferença nas pessoas. As wannabe influencers têm muito por hábito contactar as marcas para se disponibilizarem a fazer coisas, como ir comer ao restaurante ou usar o produto. E do lado da marca… A primeira coisa que as marcas fazem é contactar a pessoa que está a trabalhar com elas para avaliar determinado perfil. Muitas vezes a minha avaliação foi: taxa de engagment muito baixa, poucos seguidores, só faz stories e não põe no feed. Já estava com um pé em dois mundos.

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Mas isso foi em que altura?
Isto foi a partir do fim de 2018. Comecei a produzir conteúdo para as marcas [criou uma empresa chamada Streaming Ideias que derivou da experiência no Instagram].

A sedução, as poses naturais e os likes

Sente que já não precisa de ser influencer?
Na verdade, nunca fui. Na verdade estava a mostrar que qualquer [pessoa] pode ser influencer se fizer o trabalho bem feito.

Mas chegou a sê-lo, mais que não seja na perceção dos outros…
Na perceção sim. Aliás, o título deste livro era para ser “Por favor, não me chames influencer“.

Por ser uma palavra que ganhou uma conotação negativa?
Os influencers agora não se chamam influencers, chamam-se criadores de conteúdo. A questão passa por também eles se quererem desviar da lógica de influencer. Porque o influencer ficou conectado com um conteúdo muito superficial, muito vazio, muito glamoroso. Jovens que colocam uma foto na internet com um emoji e que têm milhares de likes. O que é que tiras dali para além da objetificação da mulher?

Curiosamente, no livro também fala sobre as poses…
Queres ver a pôr-me instagramável? [ajeita-se para uma pose como se estivesse a ser fotografada]

Mas isso cansa, o facto de se estar continuamente alerta?
Cansa. Tenho uma boa postura por causa do pilates, do ioga e do ballet, mas eu gosto de estar à vontade. Mas se sentir a Sofia a mexer na câmara, automaticamente. Isto já é automático. Nos eventos és apanhada a qualquer momento, está sempre um fotógrafo e tá, tá, tá, tá! Depois a tua fotografia vai circular.

Enquanto foi influencer ou criadora de conteúdos.
Chame-lhe o que quiser.

… Sentiu que havia pouca autenticidade entre as pessoas desse meio?
Acho que é como em tudo… Há um capítulo [no livro] que se chama “A Comunidade do Bem”, porque descobri uma comunidade muito genuína, muito autêntica, em que as pessoas estão mesmo numa lógica de entreajuda. Mas também há o outro lado, menos autêntico, mais para a foto: “Olha nós aqui todas juntas”, mas depois não são amigas, mal se conhecem. Há as duas coisas, aí não posso estar a falar mal. Porque mesmo nesse mundo de aparências há pessoas que são genuinamente amigas e, portanto, aí é mesmo como em tudo na vida.

Quando diz no livro que te sentiu seduzida por este mundo, o que quis dizer?
Aquilo é tão glamoroso, uma realidade alternativa. Dás por ti a olhar para o mundo e só vês as coisas numa lógica instagramável. E queres que tudo na tua vida seja instagramável para teres histórias para contar. Às vezes não tens. Quando começas a viver a tua vida para que esta seja instagramável, algo se passa e isso tem de parar. O que é que faço agora? Desligo ao fim de semana para não estar preocupada com a apresentação do pão, com o filmezinho do café e a fotografia do brunch. Ao fim de semana quero estar sossegada, não quero estar a fazer nada dessas coisas.

Paula Cordeiro foi fotografada em Belém, Lisboa, junto ao rio

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

Mas há algum grau de si que ainda se preocupa com essas coisas?
Sim, mas… sim e não. Sim, porque me habituei e gosto de manter a minha presença e a presença precisa de ser alimentada (gosto genuinamente de fazer fotos de comida, gosto muito). E o cuidado [com as fotos] já acontece naturalmente. Mas isto é mesmo meu, não é por causa do Instagram. De facto, produzo conteúdo durante o fim de semana porque tenho coisas para partilhar — os artigos [de opinião] para a Sábado, os podcasts com os quais colaboro, agora é o livro. Acabando a promoção do livro, se perguntar o que é que vou fazer no Instagram…

E o que é que vai fazer no Instagram depois do livro?
Não sei, provavelmente nada. A partir do momento em que deixar de ter uma coisa diária, constante para comunicar, das duas uma, ou começo a fazer outro conteúdo ou aparece algum projeto em que me envolva. No dia em que deixar de estar no Instagram a promover este livro, genuinamente não sei o que é que vou fazer. O Urbanista não vai voltar de forma alguma, porque isso foram cinco anos muito difíceis da minha vida, foi um projeto de transição.

"Há listas de influenciadores que são convidados para o evento, há listas de influenciadores que são informados do evento e há uma outra lista, que acho ridícula, de influenciadores que recebem informação do evento que já aconteceu. Passa na cabeça de alguém que vá publicar uma fotografia de um evento no qual não estive e não fui convidada? Se estas agências acham que isso acontece, são estúpidas."

Chegou a fazer dinheiro?
Cheguei. Aliás, o Urbanista tinha sido criado há um mês e tive a primeira campanha e a mais bem paga de todas e pensei “Uau! afinal isto é muito fácil”. Tive uma segunda e, depois, foi um deserto. Quando de facto dei ali o forcing, tive várias campanhas, umas de produto, outras de experiência que também é dinheiro — vais passar quatro dias a um hotel e só tens de fazer uns stories e umas fotos. Isso aconteceu.

Teve uma boa vida enquanto durou?
Tive, não me posso queixar. Não tive mais porque também não fazia por isso, não ia muito atrás. Dizia que estava disponível, mas não andava atrás das marcas a pressionar. Tive a sorte de encontrar uma agência que adorava o meu trabalho e estava a sempre a perguntar-me se queria fazer isto ou aquilo. Mas as propostas financeiramente não eram apelativas.

Não dava para viver disto?
Dava para viver disto se fizesse dez campanhas por mês. Tinha de deixar o meu emprego e tinha de me dedicar só a isto. Mas não queria deixar o meu emprego, porque depois reconcilei-me. Tu és virtualmente um catálogo no Instagram.

Os influencers são catálogos no Instagram?
São catálogos. Há muitos que são meros catálogos virtuais.

"Houve um período em que percebi que tinha adotado a postura 'Faz o que eu digo, não faças o que eu faço'. Estava a falar das estratégias, do que se deve fazer e de como aquilo pode influenciar, estava a ouvir-me e a pensar: 'Se alguém descobre, se alguém daqui sabe, levanta-se e sai porque estou a dizer para [os alunos] fazerem uma coisa e estou a fazer outra'."

Chegou a ter alunos que a seguiam?
E tenho.

Houve algum momento em que isso foi estranho?
Não. Sabe porquê? Não fiz de propósito mas fui muito esperta. Para validar o Urbanista na faculdade, para não me apontarem o dedo e para dar alguma utilidade àquilo, transformei o projeto num centro de estágios e, portanto, fui tendo estagiárias para aprenderem a produção multimédia, a gestão estratégica de conteúdos no Instagram, por exemplo, e foram elas sempre que me ajudaram a não ultrapassar o limite. Tive alunas fotógrafas, que faziam a componente de produção, alunas que aprendiam a editar o podcast, tive várias pessoas que trabalharam comigo. E como usava o Urbanista como exemplo nas minhas aulas, pela reação deles percebi se aquilo me envergonharia ou não. Nunca passei esse limite. Tenho o orgulho de poder dizer que dos três primeiros livros vendidos, o segundo e terceiro foram comprados por um aluno e ex-aluno.

O debate sobre a saúde mental

Houve uma grande evolução do Instagram nos últimos anos e o debate sobre a saúde mental já arrancou.
Estive uns dias sem likes [fez parte de uma experiência no Instagram], no ano passado. Foi um descanso. Via quantos likes tinha, as outras pessoas é que não. Ganhas mais likes porque as pessoas não sabem se [determinada foto] tem likes ou não e vão atuar genuinamente.

A questão da saúde mental e do Instagram chegou às suas aulas?
Chegou.

Em algum momento pensou “Estou a dizer-lhes uma coisa e a fazer o contrário”?
Isso aconteceu num determinado período, em que percebi que tinha adotado a postura do “Faz o que eu digo, não faças o que eu faço”. Estava a falar das estratégias, do que se deve fazer e de como aquilo pode influenciar, estava a ouvir-me e a pensar: “Se alguém descobre, se alguém daqui sabe, levanta-se e sai porque estou a dizer para [os alunos] fazerem uma coisa e estou a fazer outra”.

Agora já sabem?
Se lerem o livro ficam a saber. Eu não contei.

O livro é o capítulo final desta história?
Sim, o livro fecha esta história. Por isso é que o Urbanista não pode continuar. O segundo momento foi quando eu própria comecei a estudar a questão da saúde mental associada ao Instagram e, neste momento, estou a orientar trabalhos de fim de curso exatamente sobre isso.

O Instagram consegue ser assustador?
É. É assustador. Volto ao início da conversa. Se encaro aqui alguma missão, ela é muito simples: não é falar sobre o Instagram, é explicar às pessoas o que é que está por detrás de todas as plataformas digitais ao nível da manipulação dos conteúdos e do condicionamento dos comportamentos.

Começou isto com 40 anos, já era mãe e professora universitária e tem noção de que foi engolida por esta máquina das redes sociais. Que reflexão faz considerando quem está agora a começar?
O problema é transversal a todas as redes sociais: a autoestima, a pressão, a dependência, isso tudo é transversal, sendo que o Instagram é o pior porque se baseia na nossa imagem, é a nossa cara que está ali. Se as pessoas que estão agora a começar se concentrarem naquilo que são e na exposição daquilo que querem dar ao mundo, sejam as suas ideias pessoais ou o bolo de chocolate que fazem. Façam-no de forma genuína e concentrem-se no feedback positivo e negativo, desde que construtivo. Os likes aparecem inevitavelmente e não é isso que vai fazer a diferença quando temos um produto para vender.

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