1 Quando Portugal estava prestes a entrar em Estado de Emergência, o historiador israelita Yuval Harari publicou no Financial Times de 20 março um longo ensaio sobre o combate à covid-19 no qual afirmava que “não há adultos na sala” no que à cooperação na comunidade internacional dizia respeito.
Confesso que foi desta frase que imediatamente me lembrei a propósito da polémica das cerimónias da CGTP e da inenarrável entrevista que Marta Temido deu à SIC este sábado. É que os argumentos da ministra da Saúde e dos dirigentes da Intersindical são tão infantis como os da sindicalista Célia Lopes que garantia às televisões em plena Alameda D. Afonso Henriques que nenhum dos seus camaradas “sairá daqui com mais ou menos vírus do que aqui entra” — um pensamento que reflete uma espécie de grau zero de inteligência e conhecimento sobre a covid-19, comum às feministas espanholas que a 8 de Março reuniram milhares de pessoas no centro de Madrid para celebrar o Dia Internacional da Mulher porque, diziam, o “único vírus perigoso é o teu machismo”.
Fiquemo-nos pelos comunistas e os seus sindicalistas — já lá vamos à ministra Marta Temido. Além de terem tomado os portugueses por parvos nas explicações que deram ao país, a CGTP organizou um show off barato, gratuito e desprestigiante para demonstrar ao país a sua pretensa influência no mundo sindical — um mundo que se resume apenas à função pública e ao qual a esmagadora maioria dos trabalhadores do setor privado (ou seja, da maioria da população ativa) não reconhece, e bem, credibilidade. Precisamente porque a CGTP não é mais do que uma mera extensão dos interesses políticos dos PCP.
É indiferente aos dirigentes da Intersindical e aos comunistas que os portugueses se tenham sentido insultados com as filas milimetricamente construídas e pretensamente seguras espalhadas pelo relvado da Alameda. Às centenas de milhares de famílias que tiveram de ficar confinadas às suas casas sem verem os seus pais e avós durante um fim-de-semana prolongado interessa-lhes tanto a coreografia encenada da CGTP como as manifestações coloridas do regime norte-coreano de Kim Jong-un que o PCP tanto apoia.
Aquilo que viram na TV, e esse é o ponto essencial, é a constatação de uma enorme e perigosa exceção para uma manifestação que reuniu cerca de mil pessoas em Lisboa vindas de todos os pontos do país. Pior: com os autocarros das autarquias comunistas, como é habitual em qualquer manifestação da CGTP, a assegurarem o transporte de muitos deles. E pagos com dinheiros públicos?
Mais do que uma exceção, o que chocou foi a forma como os comunistas e sindicalistas quiseram demonstrar que estão acima dos restantes portugueses. Se as polémicas com as atitudes de apoio que o PCP toma regularmente sobre ditaduras como a Coreia do Norte e a Venezuela são encaradas como um folclore sazonal e uma extravagância própria de um partido que ficou congelado no tempo cada vez mais longínquo do muro de Berlim, é bom que os comunistas percebam que os portugueses os passaram a ver como irresponsáveis. Ou talvez isso não lhes interesse muito tendo em conta o espírito de seita que há muito marca a actividade de um partido que até acima da lei e dos tribunais julga estar.
2 Vamos agora a Marta Temido. A entrevista que deu a Rodrigo Guedes de Carvalho este sábado e a conferência de imprensa do dia seguinte é um verdadeiro manual de suicídio político que se pode resumir em três fases: indefensável, fuga para a frente e desespero
Indefensável porque a ministra da Saúde tentou defender que se tratava de uma exceção aberta pelo decreto presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa, como se o Governo não fosse absolutamente decisivo na regulamentação das regras do estado de emergência, podendo impor regras muito mais restritas para a CGTP celebrar o 1.º Maio.
Depois, confrontada com as óbvias contradições (cerca de 1.000 manifestantes quando o limite máximo é de 100 pessoas, transporte entre concelhos quando isso estava proibido, etc.), Temido encetou uma fuga para a frente e instalou a confusão ao admitir algo que já não estava previsto há muito por decisão da própria Igreja: a peregrinação ao Santuário de Fátima no 13 de maio.
Confesso que não sei o que é pior em Marta Temido: libertar a comunista que estava adormecida dentro de si para defender o indefensável ou a incompetência de admitir o alargamento a Fátima das regras aplicadas pela CGTP.
A ridícula defesa da ação organizada pela CGTP levanta suspeitas sobre o lamentável espetáculo da ministra da Saúde. Será que o Governo negociou uma abstenção do PCP na votação do orçamento retificativo e/ou suplementar? Ou será que há outro negócio político que ainda não se consegue vislumbrar?
Resumindo e concluindo: bom senso foi o que não faltou à Igreja Católica para recusar a estranha generosidade da ministra da Saúde.
3 A construção de uma nova normalidade inicia-se esta segunda-feira. Como já tinha escrito a 13 de abril, a medida de reabertura da economia era inevitável a partir do momento em que outros países europeus começaram a reabrir.
O Governo andou bem quando foi sinalizando desde meados de abril quais seriam as áreas a abrir primeiro, tal como o primeiro-ministro António Costa explicou muito bem o seu plano de regresso na última 5.ª feira.
O problema é que as próximas semanas não serão nada fáceis.
- Há uma grande preocupação com os transportes públicos e a eventual incapacidade das empresas de assegurar a rotatividade de exigida para evitar aglomerações de pessoas. Particularmente, quando a CP não tem material circulante suficiente para aumentar a sua oferta em linhas essenciais como as de Sintra e Cascais e o metro de Lisboa carece do mesmo problema.
- O R0, o indicador que mede a transmissibilidade do novo coronavírus, não está muito longe do 1, logo é natural que o suplante rapidamente nos próximos dias/semanas. Veremos se voltará a descer a seguir ou se se mantém estável.
- A crise económica vai agravar-se. Não ajuda nada obviamente que o Governo não tenha cumprido o prazo de 28 de abril que tinha anunciado para pagar os layoff. A acreditar em António Costa, o novo prazo é agora de 15 de maio mas estes quase 15 dias de diferença fazem muita diferença para os funcionários e para as pequenas e micro-empresas.
- Pior: serão os empresários a adiantar os fundos necessários para pagar os salários por inteiro aos seus trabalhadores. Com que dinheiro? — pergunto eu. É certo que o pobre coitado que tenha alguma espécie de património é encarado como um pequeno milionário pelo Estado. Mas sem faturação e sem tesouraria nos últimos dois meses, com que dinheiro vão os pequenos empresários pagar os salários dos seus trabalhadores?
A popularidade de António Costa bem pode estar nos píncaros mas será a forma como a crise económica será combatida que vai definir o futuro do Governo.
Texto atualizado às 11h30
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