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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Matilde Campilho nunca parou de escrever: depois dos poemas, tem histórias para nos contar

Pendurou um mapa do mundo na cozinha, leu o Antigo Testamento, apaixonou-se por BD e deixou a poesia. Em entrevista, a autora fala-nos do novo livro, em prosa: uma volta ao globo e aos tempos.

Pouco antes do início da quarentena, Matilde Campilho ganhou uma nova companhia e é por isso que chega atrasada. São apenas alguns minutos, mas à entrada do Jardim da Estrela, em Lisboa, franzina e ofegante, perde-se em desculpas. Jonas (e a Baleia), um labrador preto de seis meses, criou obstáculos à saída. Agora, serve de gatilho para a conversa.

Passados seis anos de Jóquei, fenómeno inesperado que fez da poesia de uma desconhecida de 32 anos o título mais vendido da Festa Literária de Paraty (Flip), no Brasil, Matilde Campilho, acaba de lançar um novo livro. E de novo uma surpresa. Uma volta ao mundo e aos tempos, em mais de duas centenas de histórias, unidas apenas por uma ideia, Flecha, que é também o título do novo livro da autora (é publicado no dia 17, já está em pré-venda no site da Tinta-da-China). São momentos íntimos e universais, protagonizados por gente como Carmen Miranda, Leonardo DaVinci ou David Bowie, entre outros ilustres e outros tantos desconhecidos. Uma espécie de panliteratura, com ecos de panteísmo, em tempos de pandemia e pandemónio, a convidar-nos a sentir a pele dos outros.

Ao longo de ano e meio, e depois de uns bons tempos de desnorte (ou de busca de um novo norte), Campilho sentou-se todos os dias na cozinha de casa, no jardim ou na esplanada em que nos encontramos, para escrever, não ao computador, como era costume, mas à mão. Escolheu pequenos cadernos, pouco maiores que o A6, em que apenas a cor da capa variava. “Nunca fui tão organizada”, explica, num português ainda contaminado pelos anos entre Lisboa e o Rio de Janeiro. O formato serviu de medida. “Se as histórias começassem a passar as três, quatro páginas daquele caderno, tinha de voltar para trás.”

A capa de "Flecha", o novo livro de Matilde Campilho (Tinta-da-China)

Porquê passar de um livro de poemas para um livro de histórias — que nalguns casos são apenas um verso?
Uma linha – não um verso! Será que são um verso? Não sei… São como as histórias contadas ao ouvido ou à volta da fogueira. Tentei que mesmo aquelas que são só de uma frase tivessem um princípio, meio e fim. Algumas delas são lugares que fazem parte do meio das histórias. E, aqui, “viram” [transformam-se] uma história dentro da história. Pensei em muitas palavras para o título: “corda”, “arame”… sempre a ideia de um fio a ligar as coisas. Pensava naquelas coisas que fazíamos quando éramos miúdos, dos pontinhos, com o alfinete…

Com o papel de lustro e a esponja?
Exato. Ao longo do caminho fui percebendo que este livro era só um livro de pontos. Fui aprendendo que a grande estrada é essa, são aqueles momentos que não esperamos e depois vamos andando entre eles. Sempre que fazemos uma linha concisa, concreta… até podemos chegar lá, mas é muito raro ser por aquele caminho. Acabei este livro antes da pandemia. Pouco depois, a vida veio mostrar-me que, por muito que eu fizesse planos, de repente a vida vinha e…

O que é que a faz um dia dizer, “deixa cá experimentar outra coisa”?
Não foi tão claro assim. Desde que saiu o Jóquei, nunca parei de escrever. Tenho maços e maços de poemas, de coisas que já pareciam contos, coisas diarísticas, mas com um pouco de ficção pelo meio. Porque já passaram seis anos [desde a publicação de Jóquei]. Isto só começou a ser escrito no último ano e meio. Naquele tempo ali houve muitas vezes em que eu pensei, “o que é que eu estou a fazer?” As pessoas às vezes perguntavam, ‘há um novo livro?’ Talvez haja… Mas não havia.

O que andou a Matilde Campilho a fazer todo este tempo?
Agora sei que já estava a preparar este livro.

Como foi o processo?
Digo que passei um ano e meio a trabalhar neste livro, mas a verdade é que, sem o saber, já tinha começado muito antes. Aos poucos fui lendo menos poesia, mais prosa, mais ensaios, mais contos. Mais histórias. Coisas com princípio, meio e fim. Muita banda-desenhada.

"Em fevereiro, março, faltava-me o texto final. O que aconteceu foi que durante a quarentena, como a maior parte das pessoas, não consegui fazer nada. Cheguei a ter medo de não conseguir voltar ao livro. Durante aquele tempo, o livro, tal como tantas outras coisas, não existiu. É curioso como a coisa mais fundamental em mim nos últimos anos me abandonou. Ou então eu abandonei-a, não sei bem."

Como por exemplo?
O Incal Negro, de Moebius e Jodorowsky; Sandman, de Neil Gaiman; A Casa, de Paco Roca. E claro, uns quantos livros de Charlie Brown e companhia. Um livro que foi muito importante foi O Homem que Caminha do Jiro Taniguchi. É só um homem a andar e só as coisas a acontecer. É uma forma narrativa japonesa – não me lembro do nome. [mais tarde, enviará por email: “kishōtenketsu. Impossível decorar uma palavra assim”]. Nos japoneses, também nos filmes do Miyazaki, acontece muito aquela coisa de não acontecer nada. Uma história é contada muitas vezes sem a existência de conflito. Ficamos presos àquilo e não percebemos porquê. Às vezes é precisamente o não acontecer nada. É igual à vida. Interessa-me muito. Estamos demasiado apegados ao conflito e à extrema polarização, parece-me importante voltar à base, ao tempo em que as coisas eram contadas devagar. E ouvidas com tempo.

E que outros textos?
A Bíblia. O antigo Testamento. Cheio de personagens, de acontecimentos.

Do princípio ao fim?
Ainda não. As minhas leituras incidiram sobretudo nos dois primeiros livros: Génesis e Êxodo. Mas porque a Bíblia é um livro cheio de ligações — visíveis e invisíveis — há sempre um asterisco a levar-nos para um outro livro mais à frente. A Bíblia não é um livro estático. Talvez tenha sido essa a maior aprendizagem que levei desse grande livro para o meu pequeno livro. Seja-se crente ou não, é um livro de histórias e personagens extraordinárias. De irmãos, de movimentos e povos, que ainda hoje nos fascinam porque ainda hoje existem. Ao mesmo tempo, a “Ilíada”, a “Odisseia”, um poema de guerra, outro de viagem. E quando digo que o livro já estava a ser construído, era isso que chamava mais e mais a minha atenção, os pequenos gestos que nos levavam de um acontecimento grande ao outro. A importância dos pequenos momentos. Para mim são muito importantes, constroem-me. Quando as pessoas estão à mesa não estão sempre a falar das coisas grandes. Depois, quando se dá por isso… Aquela coisa de as conversas serem como as cerejas.

Escrever este livro foi assim, uma história puxava a outra?
Há muitas que ficaram para trás. Mas, sim, havia noites em que escrevia cinco, seis. Há de tudo. Umas que quase chegam prontas, outras que fico não sei quanto tempo a pensar nelas, a tirar notas, a estudar.

Estudou muito?
Estudei muito. E limpei muito. A coisa de tirar, de cravar na pedra devagarinho, com o ferro. Deixar a coisa simples. Toda a gente cresceu a ouvir histórias. Seja à volta da fogueira, uma avó… E não é só o “Era uma vez”. É a vida dos outros, as histórias dos amigos. Tudo tem histórias. E sempre gostei muito disso. Depois, a literatura também tem equipas: a poesia, o romance. E são as histórias que unem tudo.

Depois de um livro de poemas e outro de histórias, faz parte de que equipa?
Acho que agora sou da equipa das histórias. Sou da equipa do lugar em que a imaginação pode vir ao encontro do real; não fica num panteão, num lugar distante.

Uma coisa que impressiona no livro é a sua orgânica interna, o encontro e relação de referências tão diferentes. Houve uma planificação racional de número de histórias por temas, eras, geografias?
Tinha uma ideia de momentos a acontecer em lugares, alguns deles ao mesmo tempo em países diferentes, alguns no mesmo jardim em épocas diferentes. Não podia querer tudo, se não rebentava. E lugares no mundo podem ser pessoas, podem ser animais, árvores, plantas. Comprei um mapa do mundo que pus na minha cozinha, que é onde trabalho. Olhava e dizia, “hoje vamos para aqui”. Trabalhava com a enciclopédia, a Luso-Brasileira, que a minha mãe comprou por fascículos quando éramos miúdos com aquela ideia de “isto é um investimento que vai sempre servir, aconteça o que acontecer”. E depois aconteceu a Internet. Lembro-me de a meio deste livro ligar à minha mãe e dizer, “obrigada!” Tinha listas de tipos de ventos, de moedas. Foi uma aventura oposta à do Jóquei, que foi uma aventura de rua, de emoções. Esta foi uma aventura de entrar nas aventuras dos outros, tentar trazê-las para casa e continuar a espantar-me.

"É muito raro chegarmos a uma coisa muito simples, mas muito boa. O que tentei foi fazê-lo, escavando, escavando, escavando. Faço psicanálise há uns anos, não sei se terá alguma coisa a ver com isso"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O que orientou esta ordem por que os apresenta?
Ligar os pontos, mas não de uma maneira linear. Um pássaro aqui, uma pessoa ali, um vento mais à frente. Queria mesmo uma coisa não linear. É a minha ordem e há três ou quatro piscadelas de olho entre as histórias, mas são independentes.

Há quanto tempo está este livro pronto?
Em fevereiro, março, faltava-me o texto final. O que aconteceu foi que durante a quarentena, como a maior parte das pessoas, não consegui fazer nada. Cheguei a ter medo de não conseguir voltar ao livro. Durante aquele tempo, o livro, tal como tantas outras coisas, não existiu. É curioso como a coisa mais fundamental em mim nos últimos anos me abandonou. Ou então eu abandonei-a, não sei bem. Houve muita gente que disse, “aproveitei para pôr as leituras em dia”. Acho que não consegui ler porque de alguma maneira precisei de proteger a minha vida normal desta loucura. Foi quase uma coisa física. A minha cabeça ou estava vazia, que é uma coisa muito rara — e não era um vazio bom, de meditação; era um vazio muito assustador, de blackout — ou não conseguia concentrar-me. Quando pensava em alguma coisa era nisto. O mundo “virou” monotemático. Não conseguia ver as notícias, ler jornais. Eu gosto muito de jornais. Os jornais tiveram uma participação enorme neste livro.

Como assim?
Todos os sábados de manhã, uma coisa que gosto muito de fazer é acordar e ir à banca comprar três ou quatro jornais internacionais. O The Financial Times, o The New York Times, a New Yorker e gosto de ler jornais italianos e franceses. Aqui vou variando, não sou tão assídua, até porque são línguas que me requerem um esforço maior. Gosto dos jornais de fim-de-semana porque trazem sempre uma história, um ensaio maior sobre uma personagem. A New Yorker também tem essa coisa. Ir ao detalhe. E pensar que houve uma pessoa que fez o fact-checking (verificação de factos) em cima do fact-checking

Este livro teve muito fact-checking?
Teve.

Antes já era esta pessoa, exaustiva, rigorosa?
Foi totalmente novo. Este é um livro mais maduro.

Voltando ao tal texto final, que diz que é quase um ensaio, foi o mais difícil de escrever?
O texto mais difícil, que eu não quero dizer qual é só para não estragar [diz “estragar” no sentido de revelar o conteúdo; refere-se ao texto da página 231], foi um texto que deu cabo de mim e fiquei assim muda durante três dias. Nunca me tinha acontecido. O trabalho da literatura é um trabalho de inspiração, sim, mas de muito trabalho. Aquele texto arrasou comigo. Uma das coisas que este livro teve é que eu realmente entrei nas histórias. Se os lugares eram bons, era bom. E há alguns textos em que os lugares são um bocadinho mais dolorosos.

Depois de ler o livro, fico com a ideia de uma busca profunda para depois extrair uma narrativa muito simples. É assim? Porquê?
É querer descascar. É muito raro na vida chegarmos a uma coisa muito simples, mas muito boa. O que tentei foi fazê-lo, escavando, escavando, escavando. Faço psicanálise há uns anos, não sei se terá alguma coisa a ver com isso.

É um processo longo, um compromisso. O que a levou à psicanálise?
Por isso mesmo interrompia tanto. Há quatro anos que faço de forma regular. É um compromisso connosco mesmos e eu levei muito tempo a assumir que podia fazer um compromisso comigo mesma. Fosse qual fosse. Decidir a linha da minha vida, o meu trabalho diário. Antes, nem sequer ficava muito tempo no mesmo lugar. Também já tinha vivido em Espanha. Hoje, há dias que gosto mais da vida que escolhi, há dias que gosto menos, mas gosto sempre.

Foi a análise que lhe permitiu chegar a essa conclusão?
Às vezes descasca-se muito para chegar a um lugar que sempre esteve ali à nossa frente, mas nós não víamos ou não quisemos ver. É um trabalho de escavar.

"O primeiro poema do 'Jóquei' foi escrito em 2009. Estamos em 2020. Quando as pessoas falam do 'Jóquei' e às vezes ainda me perguntam coisas do Jóquei, há coisas de que já nem me lembro. Não me envergonha, mas são muitos anos. Eu era outra pessoa. Portugal não é o mesmo, o Brasil não é o mesmo."

Como o do arqueólogo?
Como o do arqueólogo. É a primeira vez que estabeleço esta relação entre este livro e a análise. Não acho que seja o único caminho; é um caminho de pensamento que me agrada. Não é só pensamento e não é só emoção; é um meio caminho. Se houver alguma ligação com este livro talvez seja esta: há muito estudo, muita procura, mas não deixa de haver emoção. Nem sempre fiquei satisfeita. Às vezes zanguei-me com as histórias, outras fiz tudo de novo… Mas isto são tudo emoções.

O arqueólogo, quando começa a escavação, não sabe o que vai encontrar. No fim pode ser um caco.
Nem sempre encontrei o que esperava. Mais: nem sempre encontrei o que queria. Começava com uma ideia e a história ia para um outro pormenor da mesma história, da mesma pintura. Há histórias aqui que são absolutamente imaginárias. Outras vêm de personagens reais e trocaram-me as voltas. E eu gostei. Porque me deu a possibilidade de ir procurar mais. Saber mais. Foi quase como ir à escola.

Um dos casos é o do pai da Hipátia de Alexandria.
Ainda bem que se lembrou disso. Era para escrever sobre a Hipátia, mas acabei a escrever sobre ele. Foi um livro que me ajudou a fazer um exercício de que estamos destreinados, que é o de nos “pormos nos sapatos dos outros”. Ainda mais neste último ano e meio, em que, quer queiramos quer não, estamos tão polarizados, todos os discursos estão tão extremados, as pessoas fervem em muito pouca água. Acho que tem muito a ver com a dificuldade que temos, cada vez mais, de nos pormos no lugar do outro.

O livro é quase uma ode ao mundo. Tem folclore, tem mitologia, e tem também um lado quase místico, de empatia não só em relação ao outro, mas também em relação à natureza, aos animais, com momentos de intimidade tão particulares como universais. Esse lado mais místico — ou a religião, se quiser — tem um papel importante na sua vida?
Tem. Tem.

Quer desenvolver?
Cresci na religião católica, sou filha deste país, a minha avó era uma mulher muito católica, uma família praticante… sempre me interessou muito a parte das histórias que se ouvia, até na missa. À parte isso, sempre acreditei numa coisa a latejar aqui debaixo – ou ali em cima, à direita ou à esquerda. Naquele texto do final do livro falo muito sobre o fogo. Acho que é uma grande representação da existência permanente de uma força. Um elemento que está sempre aqui e vai vendo as coisas passar: os meus humores, os seus humores, aquele carrinho de bebé, aquela árvore crescer.

Uma coisa maior do que nós.
Uma coisa maior do que nós. E acredito que essa coisa se percebe nos momentos em que nos emocionamos muito. Para o bem ou para o mal. Há sempre um momento – quem estiver a ver de fora até pode achar que é descontrolo — quando a gente se entusiasma ou quando gritamos, quando há qualquer coisa em nós que se solta. Neste livro tento conversar um pouco com isso. Há muitas histórias que são de uma pessoa só. A pensar, a fazer um gesto. Um animal, uma árvore. Em si, cada ser vivo contém um mundo. Imagine isto a acontecer todos os dias. A nascer todos os dias. Claro que eu acredito que há uma coisa maior a fazer isto acontecer. O mundo ocidental habituou-se a desprezar um pouco este mundo natural. Nesta esplanada onde estamos a conversar, há uma corda que nos separa da relva e das árvores. Até esta coisa de um vírus saltar de dentro da mata, dos animais… Porque, enquanto seres humanos, achamos sempre que estamos a controlar as coisas. E não estamos. Fazemos parte de uma coisa. Somos seres extraordinários. Fazemos coisas extraordinárias. Mas não estamos sozinhos. E digo tudo isto e “estou no mundo”. Gosto muito de ler o Financial Times. E até leio a parte da economia!

Estou a ouvir a sua longa explicação e a pensar, tendo vivido no Brasil, acha que nós, portugueses, temos alguma dificuldade em admitir e lidar com este lado mais místico ou religioso?
Não sei se somos só os portugueses. Os ocidentais. A Europa. Temos muita história, edificámos muita coisa sobre a pedra, é a base disto tudo. Às vezes entre tanta pedra pode perder-se um pouco das sensações. No Brasil as coisas estão mais à flor da pele. Aqui somos mais comedidos. Eu gosto muito de beber dos dois lados.

"O escritor antes ninguém sabia que cara tinha; ligávamos só às palavras. Esta coisa de ter de dar a cara… Gosto muito da minha vida privada. O que quero contar está nos meus livros"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quando foi a última vez que esteve no Brasil?
A última vez foi quando fui à FLIP.

Onde foi apelidada de…
[Diz que não com a cabeça]

Não quer ouvir: “A grande comoção da Flip?”
Não.

Fez um livro de poemas que foi um fenómeno, quase um fenómeno pop. Como foi lidar com isso?
[Não diz nada, faz apenas um ar de desagrado]

Foi doloroso, de alguma maneira?
Foi estranho. O primeiro poema do Jóquei foi escrito em 2009. Estamos em 2020. Quando as pessoas falam do Jóquei e às vezes ainda me perguntam coisas do Jóquei, há coisas de que já nem me lembro. Não me envergonha, mas são muitos anos. Eu era outra pessoa. Portugal não é o mesmo, o Brasil não é o mesmo. Na altura, estava há quatro anos a viver entre Portugal e o Rio de Janeiro. A trabalhar entre televisão e publicidade. Nada muito oficial. Tinha ido para o Rio de Janeiro passar 15 dias e gostei tanto que fui arranjando maneiras de voltar. Quem lança um livro de poemas, dá-se por satisfeito por alguém querer publicar o livro.

Como é que isso aconteceu?
Vivia no Brasil e já publicava um poema nos jornais, nos suplementos de cultura. E paralelamente tinha um grande amigo poeta mais velho, o Carlito Azevedo, que dizia, “está na hora de fazeres um livro”. Fui resistindo à ideia. Achava que o mundo já tinha livros suficientes. Comecei a fazer esse livro e depois um dia recebi um email do Pedro Mexia a dizer que tinha lido as minhas coisas, mas que só agora tinha percebido que eu era portuguesa e a perguntar se tinha alguma coisa para publicar. E pronto.

E saiu.
Fiquei muito satisfeita só por publicar um livro. Eu, a minha família, os meus amigos. Não esperava nada. Não vinha do environment da literatura, os meus amigos não liam…

Mas estudou literatura.
Sim, mas era uma coisa solitária. Não conhecia os humanos da literatura; conhecia só os livros. Era uma coisa minha. Sempre gostei da coisa aberta; nichos há sempre, em todas as áreas, imagino até que nas equipas de badmington haja grupos. Mas eu nunca compreendi muito bem porque é que há grupos contra grupos dentro do próprio grupo. Costumo dizer, “Quando vier o monstro para vos atacar, vocês estão todos brigados.” Desculpe, estou-me a perder. Lancei o livro e já tinha feito o meu trabalho. Depois, não sei bem o que aconteceu. As pessoas leram e gostaram. Teve um lado muito bom, que foi o reconhecimento que fez com que eu mesma aceitasse que era isso que eu fazia e era isso que eu queria fazer todos os dias. Deu-me também mais trabalho na área.

E pela negativa?
Escrever é muito solitário e eu gosto disso. A solidão é que me permite fazer o meu trabalho. O escritor antes ninguém sabia que cara tinha; ligávamos só às palavras. Esta coisa de ter de dar a cara… Gosto muito da minha vida privada. O que quero contar está nos meus livros.

Passou a ser reconhecida na rua?
Mais ou menos. Ainda sou aquela pessoa que os outros acham que conhecem do comboio. A única altura em que eu pensei, “o quê??”, foi durante a Feira de Paraty [FLIP]. Mas porque era uma feira de literatura. As pessoas paravam-me na rua, pediam para tirar uma foto, pedir conselhos. E eu fiquei só um bocadinho paralisada, entre a vontade de rir, porque eu sabia que aquilo durava cinco dias…

"Não só cresci, como envelheci. Essa foi nova, a do envelhecer. Fiz um esforço por não perder isso. A vida acontece na mesma. As pessoas tendem a pensar que quem ainda se deslumbra e espanta é porque nunca passou pela vida ou a vida não passou por elas. Mas é um trabalho diário."

Conseguiu manter sempre os pés bem assentes no chão?
Mais ou menos. Se achasse que isto ia ser sempre assim, acho que me tinha enfiado debaixo dos lençóis.

Sentiu alguma angústia depois de Jóquei: o que vou fazer a seguir?
Um bocadinho. Mas vinha mais dos outros, daquela pergunta, “então, há livro novo?” Porque, claro, eu era escritora. Podia haver um “não”, e eu continuaria a ser escritora tendo escrito apenas um livro.

E hoje o que faz?
O meu trabalho é escrever. Tenho um programa de rádio na Antena 3, uma crónica na [revista] GQ e faço outros trabalhos, aqui e ali. Nunca paro de procurar outras coisas em que possa pôr o meu eu. Porque isto não paga as contas. Abdico de muitas coisas. Não é fácil. Também já trabalhei várias vezes em restaurantes, a lavar pratos, a servir às mesas, em hostels. Muitos trabalhos que me permitam continuar a fazer isto todos os dias. É muito incerto ao fim do mês. Por outro lado, é muito certo aquilo que sou e aquilo que gosto de fazer.

Hoje tem a certeza de que é isto?
Tenho. Gosto muito do que faço. Dá-me muito trabalho. Dá-me cabo das costas. Fiquei um bocadinho mais torta nos últimos anos por escrever de facto todos os dias.

Acha que o tempo todo que esteve sem publicar teve alguma coisa a ver com o “fenómeno” em que se transformou Jóquei?
Eu nunca deixei de escrever. Mas não tinha nada que quisesse dizer. Aí fico calada.

E o que quer dizer com este livro?
Acredito que as histórias são quase um lugar que pode unir pessoas. Acredito que as histórias são o contrário das barreiras. Fazem companhia. O que quis fazer com este livro foi o que ele fez comigo: tirá-las do seu dia-a-dia e levá-las para a passear nos sapatos dos outros. Uma coisa sussurrada.

E agora?
“E agora?” Isso era antes que se perguntava. “E agora?” agora é para todos nós. Ninguém sabe. Está a acontecer uma coisa que ninguém pode ignorar.

Pensa muito na pandemia?
É tão recente… Ela está aí. Na cidade é mais difícil esquecermo-nos. Quando saio da cidade é mais fácil voltar, até a mim mesma.

Já consegue pensar na sua vida?
Já consigo pensar noutras coisas. Acabei de terminar este livro. Ainda tenho de o abrir, olhar para ele.

Porque é que ainda não o abriu?
Não sei… Depois de o entregar houve ali uma altura em que tive saudades daquele meu ritmo, das histórias, daquelas coisas que ia descobrindo, de entrar em mundos que me tiravam do meu.

Ao mesmo tempo é um livro muito ambicioso, não?
Será? A dada altura conversei um pouco comigo e disse, “Eh, Matidle!” Mas depois pensei, “Não, não vou abarcar o tudo, ninguém faz isso”. Aí sosseguei. Vou só contar histórias de lugares, de momentos, de pessoas que passam no mundo. Como quem escreve uma banda-desenhada.

Há um deslumbramento com o mundo?
[Dois pardais pousam numa das cadeiras ao seu lado e ficam por lá. Matilde responde a olhar para eles.]
O mundo ainda nos dá razões para isso, não? A brincar, a brincar, já tenho quase 40 anos. Faço 38 este ano. Não só cresci, como envelheci. Essa foi nova, a do envelhecer. Fiz um esforço por não perder isso. A vida acontece na mesma. As pessoas tendem a pensar que quem ainda se deslumbra e espanta é porque nunca passou pela vida ou a vida não passou por elas. Mas é um trabalho diário. E também tive a sorte de ser muito bem acompanhada por avós que me pediram sempre que não me esquecesse de olhar para as coisas. Quis cumprir.

Mais tarde, já de gravador desligado, já depois das fotos, já descontraída, já depois de pedir mil vezes desculpas pela deriva nas respostas, há-de reconhecer que se calhar tem um plano, uma coisa que gostaria de fazer: banda-desenhada.

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