Na Ucrânia, Ihor jogava futebol e era o capitão de equipa. Tem dez anos e já pediu à mãe para jogar no relvado do estádio do União de Leiria, que agora serve de casa temporária para os refugiados ucranianos. “Veremos”, responde Olga Postolenko. Tal como a maioria das pessoas que fogem da guerra, Olga e os dois filhos, Mariia e Ihor, saíram do país com apenas uma mala. Trouxeram Linda, a cadela batizada com um nome português em memória da altura em que a casa era Portugal. “Os meus filhos não queriam que a Linda ficasse na Ucrânia.”
A família regressou agora em condições diferentes — saiu da Ucrânia a 28 de fevereiro, a pé, pela fronteira com a Roménia. Ao Observador contam que os vizinhos lhes dizem que a casa onde moravam, em Kiev, ainda não foi destruída. Mas isso não os descansa, até porque deixaram para trás os pais de Olga.
Num inglês a conta gotas, esta ucraniana explica que escolheu Leiria por ter amigos na comunidade: “Eles ligaram-me e disseram-me que Portugal estava a receber pessoas da Ucrânia.”




▲ Na bagagem da família Postolenko veio a cadela Linda.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Desde que chegaram, dormem no mesmo camarote, em camas e beliches com lençóis com as cores da bandeira ucraniana — Linda também fica lá.
Enquanto conta a história de como ali chegou, Olga vai pesquisando a tradução em inglês das palavras que lhe vêm à cabeça em ucraniano. Uma delas é “nadiia” — “esperança”, em português. Mas, para já, não sabe o que vem a seguir, apenas que gostaria de paz para poder voltar à Ucrânia, onde ficaram pessoas de quem gosta muito. “Todos os dias escrevemos mensagens ou falamos. A minha mãe chora, a minha irmã pergunta pelas crianças, por mim e pelo meu futuro. Mas eu não sei”, desabafa.
E, enquanto não há condições para regressar, há outras preocupações, como o “tempo que vai demorar para encontrar trabalho, escola e uma casa”. Os mais novos também estão receosos com o terem de ir para “uma escola nova”, com colegas novos “e uma língua difícil para eles.”
Olga diz sentir-se agora segura, ainda que admita, num português esforçado, que vá precisar de muita “força”, porque nada acalma “o coração a chorar” pela sua Ucrânia.
As palavras escritas na ardósia e a promessa de não chorar
A língua é a maior barreira para quem chega. Mas os primeiros passos já estão a ser dados: a comunidade ucraniana de Leiria, por exemplo, tem ajudado, ensinando até as palavras necessárias para o dia a dia em Portugal. Esta sexta-feira, num quadro de ardósia, estavam escritas algumas delas — “Obrigada”, “Boa noite”, “Boa tarde”, “Por favor”. E, à frente de cada uma, estava a tradução em ucraniano. O objetivo é que, para já, os refugiados saibam cumprimentar, agradecer e pedir ajuda em português.


▲ Filhos de ucranianos em Portugal, ensinam as palavras básicas em português através de um quadro de ardósia.
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Entre as cerca de 20 pessoas acolhidas no Estádio Dr. Magalhães Pessoa, são poucos os que falam inglês, mas entre eles há uma professora que lecionava a língua. Alyona Nevkipilova chegou ao estádio do Leiria na quinta-feira à noite, saiu de Kiev um dia depois de Putin anunciar uma “operação especial” na Ucrânia. A viagem foi longa: passou pela Hungria, Eslováquia, Itália e Espanha. E escolheu Portugal “porque é seguro, não há explosões”. “Nada do que se passava na Ucrânia.”
Está numa situação a que não imaginava chegar. “Nunca acreditaria que iríamos ter esta situação no nosso pacífico país. Eu tenho familiares na Rússia e desde criança que me lembro de nos dizerem que somos irmãos e irmãs” conta ao Observador, afirmando que não era assim que queria sair pela primeira vez da Ucrânia.
A primeira viagem ao estrangeiro tinha sido planeada com o marido: “Nunca pensei que acontecesse nestas condições, tinha planeado com o meu marido viajar para o estrangeiro numa carrinha. Gostamos de viajar. Na Ucrânia já visitámos muitos sítios. Tínhamos planeado ver mais países juntos, em família.”
Mas o marido ficou para trás, em Mykolaiv, e deixou Alyona com um pedido: “Que não chorasse. Prometi ao meu marido que vou ser forte. Ele ficou num sítio muito perigoso, onde morreram muitas pessoas e onde muitos edifícios foram destruídos.” A mãe também ficou para trás, por recusar sair do país: “Deu-nos a benção dela, mas ficou, num sítio mais seguro.”


▲ Alyona Nevkipilova e o filho chegaram a Leiria na quarta-feira à noite
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
A saída do país já foi “difícil a nível psicológico, havia muitos pontos de controlo”, mas Alyona sublinha que quem está a tentar sair agora “está numa situação muito mais complicada”. Consigo, trouxe o filho de seis anos, que diz gostar muito de dormir com vista para o estádio. No entanto, ainda não compreende a situação. “O importante é que ele está aqui comigo, ainda que parte da minha família continue na Ucrânia. Ele não está feliz, mas está satisfeito e está seguro.”
“Temos tudo o que precisamos, exceto paz na nossa terra natal.” O próximo passo? “Quero arranjar um emprego, ganhar dinheiro e ser eu a garantir sustento para a minha família”, atira a ucraniana acabada de chegar ao Observador.
“Estamos a fazer o que conseguimos”
A ajuda dada às famílias compostas sobretudo por mães e filhos vai chegando de várias mãos. Mas uma grande fatia vem da comunidade ucraniana em Leiria — há intérpretes e pessoas que vão recebendo os donativos que chegam ao estádio. Uma delas é Natália, que mora em Portugal há 20 anos. É russa e quando fala da sua nacionalidade faz questão de se justificar: “Eu sou pela paz.”
Natália tem estado a organizar as listas de pessoas que precisam de ajuda para sair da Ucrânia. Entre os vários telefonemas que vai recebendo, o marido conta que “não dorme, nem come”. Até durante a noite recebe pedidos de ajuda. “Ontem até às cinco da manhã estava ao telefone”, recorda.


▲ Refugiados recebem apoio da comunidade ucraniana que reside em Leiria
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Mariana queria ir para a Ucrânia ajudar, mas está a fazê-lo em Portugal. A família continua no país de origem e o irmão é quem causa maior preocupação “por ser militar”. Por enquanto, ela tem de ficar em Portugal, onde vive há 13 anos “por causa das filhas”. Conta que tem sido difícil levar bens e ir buscar pessoas a território ucraniano, por falta de quem conduza os carros: “Os homens entre os 18 e os 60 anos que entrem não podem voltar a sair. Por isso muitos não querem entrar no país.” Mas já enviaram roupa, comida e medicamentos a quem precisa.
Quanto à ajuda que está a prestar a quem foge da Ucrânia, Mariana conta que, um dia depois de a guerra ter começado, teve uma reunião com a Câmara Municipal de Leiria para começar a ajudar quem queria sair do país. “Mais parecia uma manifestação”, conta, enquanto realça que está a ser feito o que é possível pelas pessoas que querem deixar o país.
“Venho ajudar, porque as pessoas nem conseguem explicar aquilo de que precisam. Pedir um simples comprimido pode ser difícil”, diz Vitória. Deixou o número na Câmara Municipal para que lhe ligassem quando fosse preciso ajuda e tem feito sobretudo tradução, mas também já esteve a embalar roupa, comida e medicamentos para enviar para a Ucrânia. “O que eu puder fazer, vou fazer. É difícil para toda a gente.”


▲ O estádio funciona também como armazém. Os bens doados vão depois chegar à Ucrânia e aos países vizinhos que estão a acolher refugiados
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
O armazém de recolha de bens está recheado de caixas embaladas e há sempre pessoas a chegar com donativos. Os voluntários vão mandando algumas coisas para trás, pedem às pessoas que as tragam mais tarde — “na próxima semana, ou daqui a uns dias” —, porque uma das dificuldades é conservar aquilo que vai chegando.
Os refugiados que estão em Leiria vão escolhendo, entre os bens doados, aquilo de que precisam. Entre os voluntários que vão arrumando bens essenciais em caixas está Sara Familiar. Viu nas redes sociais da associação de estudantes da faculdade que estavam a pedir voluntários. “Soube que era preciso ajuda e vim.”
Sara vai arrumando artigos de higiene, ao lado de Pedro Antunes, que diz que não ajuda para ter mérito. “Trata-se apenas de se pôr na pele no outro. Tenho amigos ucranianos que se estavam a mobilizar para ajudar e eu juntei-me.” Promete estar ali “todas as noites enquanto for preciso” e garante que tem chegado muita ajuda aos refugiados. Entre os voluntários há portugueses, ucranianos que já moravam em Portugal e refugiados que chegaram à cidade há dias.
“Sabemos que terá de ser sempre temporário”
Os quartos com vista para o estádio foram uma solução encontrada pela Câmara Municipal de Leiria, depois de a comunidade ucraniana da região se ter mobilizado para começar a trazer amigos e família para Portugal. Os refugiados vão ocupando o tempo a conhecer o centro da cidade. As crianças têm brinquedos, lápis de cor e folhas disponíveis, num espaço que conta também com um tapete com as cores da bandeira da Ucrânia e com uma televisão, para que quem lá mora temporariamente possa ir acompanhando as notícias.




▲ Há salas de estar improvisadas no estádio que estão equipadas com brinquedos, jogos de tabuleiro e uma televisão
TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
Sentado na sala de estar improvisada para os refugiados, decorada com arranjos de flores azuis e amarelas, o presidente da autarquia, Gonçalo Lopes, explica que durante a pandemia o estádio já tinha sido usado “como quartel-general” e que, por isso, a câmara já sabia que esta era uma opção.
Gonçalo Lopes explica, no entanto, que a estada nos camarotes do estádio do União de Leiria está pensada para ser temporária. “Temos já outras ofertas disponíveis de particulares que disponibilizaram desde casas, a quartos e estalagens para poder apoiar. A habitação é algo que está a ser relativamente planeado. O projeto de integração é que vai obrigar a mais trabalho de equipa.”
Ainda assim, não é possível prever quanto tempo os refugiados vão permanecer naquelas instalações e “é natural que surjam oportunidades de outros contactos”. “As entradas e saídas serão extremamente dinâmicas. Não queremos que se crie aqui uma presença permanente. Sabemos que vai depender muito de cada caso, das condições que as famílias terão e da evolução da guerra nos próximos dias.”
As primeiras famílias a ser acolhidas chegaram na segunda-feira. A previsão é que mais refugiados sejam recebidos na próxima semana no Estádio Dr. Magalhães Pessoa, que ao todo tem capacidade para 54 camas.


▲ Os últimos refugiados chegaram na noite de quarta-feira
Rui Miguel Pedrosa / Observador
“Tem havido um forte empenho da comunidade ucraniana a residir em Leiria. Algumas das pessoas há duas décadas. Têm tido um papel muito importante na dinâmica cultural, associativa e sobretudo económica da região. Têm sido uma peça muito importante no apoio do voluntariado deste acolhimento e têm sido eles a referenciar, traduzir e acompanhar todas estas pessoas que têm chegado cá. Isto é muito importante, porque a barreira da língua é enorme. Se estivéssemos sozinhos, sem rede, seria muito difícil. O apoio deles garante tranquilidade neste processo de integração”, sublinha o presidente da Câmara Municipal de Leiria.
Gonçalo Lopes recorda, por isso, a grande comunidade ucraniana no concelho: “Em 2020 estavam registados aproximadamente mil ucranianos no concelho de Leiria que, ao todo, tem 130 mil habitantes, mas estima-se que sejam muitos mais do que os mil”.
De capitão de equipa em Kiev a refugiado no estádio de Leiria