Enviado especial do Observador à Rússia (em Moscovo)

Nos Jogos Olímpicos, todos os jornalistas necessitam de uma acreditação para aceder à Aldeia Olímpica e aos eventos das mais diversas modalidades mas existem alguns dias específicos que exigem também uma entrada extra para entrar em determinados espaços. Alguns exemplos? As finais de natação, que por norma se realizam à noite na primeira semana, ou todos os jogos de basquetebol dos Estados Unidos (e por inerência a final, claro) que envolvem algumas das maiores estrelas da NBA. Por aqui, e até agora, ainda não tínhamos enfrentado qualquer dificuldade em ter os bilhetes específicos quer para a bancada de imprensa, quer para a zona mista. No entanto, e olhando para um centro de imprensa que poderia encher só com brasileiros, estavam ali todas as condições para a primeira “derrota”. Uma finta para aqui, uma finta para acolá, um beicinho, dois piscares de olhos e lá conseguimos fugir ao fatídico e provável destino de ficar à porta da zona mista. O resto da história guardamos para amanhã, mas foi ali naquele espaço, depois das reviengas, que encontrámos uma das surpresas do Brasil neste Mundial, por sinal um central e que já passou por Portugal: Pedro Geromel, ex-Desp. Chaves e V. Guimarães.

Mas demorou. Demorou, demorou e demorou mesmo muito, o suficiente para Matic falar aos jornalistas presentes e Zivkovic parar na zona onde estavam sérvios, juntamente com Jovic. E demorou mais um bocadinho, porque os brasileiros têm por norma jantar logo no estádio a seguir ao jogo antes de voltarem à sua base, que está concentrada em Sochi, onde Portugal jogará no próximo sábado frente ao Uruguai (e que fica a mais de duas horas de Moscovo de avião). E mais um bocado, tanto que deu para os próprios jornalistas habituados ao teste de grau elevado à paciência fazerem previsões sobre quem parava ou não e até como Neymar, a rir, conseguiria furar por toda a gente de telemóvel na mão. Cerca de duas horas depois do apito final, começam a sair os primeiros jogadores. Juntos, o que é sempre pior para quem quer falar com um jogador em específico. O guarda-redes Cássio foi o primeiro, Geromel veio no grupo seguinte. E foi também aqui uma revelação, pela positiva.

Geromel com Neymar num treino do Brasil em São Petersburgo antes do jogo com a Costa Rica (CHRISTOPHE SIMON/AFP/Getty Images)

Aos 32 anos, o central tem um percurso invulgar em termos de carreira, com quase tantas descidas de divisão como títulos ganhos (e todos pelo Grémio, incluindo o Campeonato Gaúcho e a Supertaça Sul-americana em 2018). Nascido em São Paulo no seio de uma família de classe média alta, começou a jogar na Escolinha da Coroa mas não demorou a passar para a formação da Portuguesa, antes de saltar para o Palmeiras com uma “cunha” do amigo e antigo companheiro de classe Elias, médio que passou pelo Sporting e que atua agora no Atl. Mineiro (e com quem chegou a abrir uma casa de hambúrgueres em São Paulo). Foi daí que surgiu um salto com tanto de desafiante como de arriscado, quando se mudou com apenas 18 anos para o Desp. Chaves em busca do sonho de ser profissional de futebol. Foi aí que, como contou numa entrevista ao jornal O Jogo, viveu em casa da tia de um amigo antes de passar para uma casa por cima de um restaurante, onde comeu “a melhor vitela da vida”.

Geromel, que queria ser tratado por Pedro mas ficou conhecido pelo apelido que alguns colegas de equipa diziam ser nome de remédio, ainda chegou a fazer testes no FC Porto B mas não teve parecer positivo por parte de Domingos em virtude das limitações de estrangeiros que havia então, mas foi progredindo e acabou por mudar-se para o V. Guimarães em 2005, chegando ao final da terceira época com demasiado mercado e uma proposta que acabaria por aceitar dos alemães do Colónia (apesar de ter sido apontado, por mais do que uma vez, aos grandes da Primeira Liga, sobretudo o Sporting quando procurava um líder para a defesa). Ainda chegou a ser emprestado ao Maiorca e ao Grémio, antes de fixar-se num conjunto de Porto Alegre onde gerou muitas dúvidas no início por uma questão de desconhecimento até ganhar alcunhas como GeroMito, GeroMonstro ou GeroDeus.

Geromel chegou ao Desp. Chaves em 2003 e estreou-se pelo V. Guimarães em 2005, onde ficou três anos (MIGUEL RIOPA/AFP/Getty Images)

Irmão de Ricardo Stanford Geromel, que foi estudar Administração para os Estados Unidos na Fairleigh Dickinson University, onde recebeu uma bolsa para jogar futebol mas acabou por optar por fazer carreira no mercado financeiro – como contou numa entrevista ao Globo em 2015 -, e começar a escrever na revista Forbes (onde é também um dos responsáveis pela delineação dos rankings anuais dos maiores milionários), tendo também estado ligado à recuperação dos Fort Lauderdale Strikers (que tinha como um dos sócios Ronaldo, o Fenómeno) e dos San Francisco Deltas, o central que contou com o apoio dos apoios na Rússia (a mulher e os três filhos ficaram em São Paulo, “torcendo” de bandeira e corneta com pipocas para os miúdos porque o mais pequeno ainda não tem idade para fazer grandes viagens de avião) falou com o Observador, o Expresso e o MaisFutebol e provou com palavras aquilo que todos dizem dele: é uma pessoa com tanto de simples como de interessante.

Com a Sérvia, o Brasil já deixou uma imagem mais consentânea com o seu valor…
Acho que o principal era a qualificação para a próxima fase e ficar no primeiro lugar, conseguimos isso.

Como é que um jogador que com 18 anos estava no Desp. Chaves em Portugal se sente agora no Mundial?
Muito feliz, é sinal que todo o esforço que fiz acabou por valer a pena e foi coroado com a presença na Copa do Mundo. É uma coisa que não tem preço.

Passaste depois pela Alemanha e por Espanha, estás agora no Brasil. E voltar a Portugal?
Não, para já não… Tenho o meu tempo em Portugal feito, estou muito grato por tudo ao V. Guimarães e ao Desp. Chaves mas agora já não consigo mesmo ver um regresso a Portugal.

Há alguns anos falou-se também do interesse do Sporting…
Já faz muitos anos que se fala disso tudo mas nunca teve nada de concreto.

E o que é que mais recordas de Portugal?
Recordo muito, estive cinco anos lá e tenho um carinho muito especial por Trás-os-Montes, pelo Desp. Chaves e pelo pessoal do V. Guimarães que me acolheu muito bem. Deixei muitos amigos.

Mas a torcida do V. Guimarães era muito exigente…
Verdade, os adeptos são muito queridos, apoiam muito e também cobram muito.

Geromel num particular com a Colômbia, no âmbito da homenagem às vítimas do desastre aéreo da Chapecoense (Buda Mendes/Getty Images)

Como é que foi chegar do Brasil e de São Paulo a uma cidade tão pequena como Chaves aos 18 anos?
Sim, foi mesmo. Sou de São Paulo, uma cidade muito grande e de repente chego a Chaves, uma cidade pequena, na altura com 20 mil habitantes. Quando cheguei fui visitar a cidade, andei por ali a passear nas calmas e depois perguntaram-me ‘Então, gostou da cidade?’. E eu: ‘Mas é isto tudo?’ [risos] Foi um choque muito grande também de cultura. Depois cheguei no Verão, em julho. Quando começou a chegar o Inverno lembro-me que não tinha camisola e passava frio pra caramba! Por isso juntei o salário, comprei uma camisola e usava todo o dia, andava com ela todo o dia, ia com ela direito para o treino, já ia praticamente treinar sozinha! Foram tempos que hoje posso olhar para trás e ver que esse esforço valeu a pena e fui recompensado.

E pensaste voltar para o Brasil nessa altura?
Com certeza! Só faltou mesmo a parte do ‘Vamos’, se me chamassem ia correndo.. [risos] Mas tinha muito que fazer, foi a vida que eu escolhi, tinha vontade de ser jogador e tinha de passar todos esses obstáculos.

Falar com as pessoas, era fácil?
No início quando cheguei eles falavam, diziam que era um nome giro, Geromel, que tinha uma camisa bonita… Eu só dizia que sim mas porque não entendia nada, era muito complicado! Depois de duas ou três semanas já estava habituado.

E o V. Guimarães, já foi uma passagem diferente?
Sim, aí já estava adaptado ao futebol, às táticas, aos sistemas de jogo, aos portugueses, aos costumes, à comida, ao clima… Isso tudo ajudou a que a adaptação fosse mais rápida.

Falaste da comida, sentes mais falta de que prato?
Francesinha, com certeza, fogo! [risos] Francesinha com aquele molho especial, é maravilhoso.

E houve algum treinador que te tenha marcado mais daquela passagem?
Tive muitos bons treinadores, tive uma passagem muito feliz com o Manuel Cajuda, que é uma figura… Acho que os treinadores portugueses são muito bons e isso vê-se não só em Portugal mas no mundo todo, com treinadores consagrados que estão em grandes ligas, em grandes campeonatos sempre à frente de grandes clubes.

O Cajuda tem muitas histórias…
Muitas histórias, muitas histórias, muitas histórias mas não estou aqui para contar agora, não é o momento [risos]

Disseste que o tempo em Portugal acabou mas a possibilidade de voltares à Europa, ainda existe?
Para já não penso nisso, estou muito feliz no Grémio e muito contente de ter chegado aqui à seleção porque se não fosse o Grémio não tinha chegado aqui mas nunca digo nunca… Quando uma pessoa trabalha.

Só falta mesmo ser campeão do mundo…
Já é um grande mérito, este ano já tenho dois títulos pelo Grémio e este seria o mais importante.

Achas que ainda vais conseguir os teus minutinhos neste Mundial?
Não tenho a mínima pressa, o importante é ganhar os jogos e se conseguirmos continuar assim é o que interessa.