Um livro que nos faz falar de outros livros, que marcaram uma infância passada em Mindelo, e também da música que desde cedo serviu de banda sonora à vida de Inês Meneses, radialista há mais de 30 anos. O assunto da entrevista é o Caderno de Encargos Sentimentais, editado pela Contraponto depois de as três primeiras edições terem sido de autor e terem esgotado. O livro reúne textos que convidam à reflexão já antes publicados no Facebook e que agora encontram lugar em páginas coloridas e cuidadas. A obra conta com o prefácio do escritor Valter Hugo Mãe que a designa de “armadilha sentimental”.
Inês Meneses dispensará apresentações para muitos, mas um resumo vai sempre a jeito: a já longa carreira conta com passagens pelas rádios TSF e Radar, além de ser autora dos programas “Fala Com Ela”, “PBX”, com Pedro Mexia, e “O Amor É”, com Júlio Machado Vaz. À conversa com o Observador, Meneses fala do amor, da estima, da curiosidade e da música.
“O amor não se esgota nessa paixão arrebatadora, mas o ideal era todos podermos vivê-la, até para escrevermos livros, escrevermos canções e fazermos filmes. Nem que a seguir venha um desgosto enorme que nos faça escrever os mesmos livros e as mesmas canções, fazer os mesmos filmes ou, quem sabe, pintar um grande quadro.”

O livro está à venda por 9,90 euros.
Quando era mais nova, o que é que fazia: lia, escrevia ou ouvia rádio?
Não escrevia. A determinada altura escrevia uns pensamentos mais depressivos, na adolescência. Mas [quando era mais nova] lia muito, muito, porque vivia em Mindelo e nós tínhamos acesso à biblioteca itinerante da Gulbenkian que andava pelo país todo. Já não me lembro qual era a frequência com que a biblioteca chegava a Mindelo, mas vamos pensar que era mensal — lembro-me que trazia o máximo de livros possível, vinha carregada. Trazia dez livros, imaginemos, e devorava-os. Às vezes conto isto em jeito de brincadeira para as pessoas perceberem (também o digo à minha filha): eu era tão fascinada pelo que lia que levava um livro para a casa de banho, esquecia-me de onde estava e eu o meu ia e, de fora, apagava a luz para me obrigar a deixar de ler… Nessa altura tínhamos televisão, tínhamos dois canais, mas tínhamos essencialmente a rádio por companhia e os livros também.
Ficava fechada nas histórias que lia?
Completamente. Estou a falar de uma idade ainda muito inicial, em que lia bandas desenhadas do Babar ao Petzi, coisas de miúdos, mas nós não tínhamos acesso, não íamos comprar os livros, não tínhamos dinheiro para isso. Depois comecei a ler outras coisas, passei por aquelas aventuras juvenis que nos fizeram a todos muito bem, esses já foram comprados — lembro-me de o meu irmão fazer a coleção dos livros “Os Cinco” e de eu, de certa forma, a ter herdado e de ter viajado com eles pelo mundo sem sair do meu. Às vezes escolhia os livros pela capa, pelo nome… Já não me lembro de que livro foi, mas anos mais tarde percebi que tinha lido um livro do Dostoiévski sem saber na altura quem era o Dostoiévski e o que é que aquilo representava… Nós aproveitávamos ao máximo essa oportunidade de poder ler, de ter acesso aos livros, de os devolver. Havia um respeito e um rigor que não sei se se perdeu, mas que era muito interessante: nós éramos zeladores dos livros que trazíamos para casa, porque depois tínhamos de os devolver intactos.
Talvez houvesse um valor diferente pelas coisas precisamente por existir menos oferta…
Exatamente. Com todas as vantagens que temos hoje — e ainda bem que temos acesso a tantas coisas — o excesso também nos trouxe dispersão. Hoje se calhar banalizamos algumas coisas que eu com seis anos de certeza que não banalizava. Lembro-me da oportunidade que tinha quando ia ao Porto, ao médico, e a minha mãe oferecia-me um livro da Anita. Era um motivo de festa. Hoje em dia pegamos num livro e… há muitos, felizmente, mas se calhar não lhes damos o devido valor.
O excesso acaba por retirar aquele carácter especial a algo que antes tínhamos poucas vezes.
Isso mesmo. Isso em relação a tudo. Em relação aos discos, a um bolo que se fazia numa ocasião especial. Agora, todos os dias comemos sobremesas. Lembro-me do tempo em que comia uma sobremesa em dias de festa. Isto não tem nada de saudosista em relação ao passado. O que quero dizer é que, hoje em dia, temos muito mais oferta, ainda bem, mas, ao mesmo tempo, essa oferta, esse tal excesso, deixa-nos um bocadinho atordoados e nós tendemos a aligeirar a relação com o que temos e, por vezes, a banalizar. Lembro-me de ter um livro ou uns sapatos novos… eu era capaz de dormir com esses objetos comigo na cama por gostar tanto daquilo, por serem as coisas mais maravilhosas que tinha.
Atualmente tem tempo para ler?
Menos. Leio, mas leio muito menos. Acabo por ler muitas revistas. Vou lendo livros com menos frequência porque também se calhar vou ouvindo mais música.
Por falar por música… Como é que começa isto da rádio? Foi por causa da música ou por causa das pessoas, no sentido de chegar aos outros?
Nós ouvíamos muita música lá em casa, eu e o meu irmão, tudo muito graças a ele que me deu a conhecer imensas bandas, imensos nomes. O meu pai e a minha mãe também ouviam música. O meu irmão que é jornalista, o João Paulo Meneses, já trabalhava em jornais e foi para a rádio. Um dia disse-me que achava que eu tinha uma boa voz para fazer rádio. Eu tinha 16 anos, obviamente nunca me tinha ocorrido que podia ter uma boa voz para rádio, sabia lá eu o que era uma boa voz. Lá fui experimentar fazer rádio e nunca mais saí. E comecei por fazer noticiários.
Era a “menina das notícias”, segundo o prefácio do escritor Valter Hugo Mãe…
Sim… era a menina das notícias, nem sequer foi a música que me empurrou. Sendo que a música sempre foi importantíssima para mim porque nós ouvíamos muito, o meu irmão gravava cassetes e tínhamos discos de vinil em casa. Sempre fomos todos melómanos, eu sabia as canções todas de cor. Em determinada altura devo ter sonhado ser cantora, mas não foi a música que me empurrou para rádio, foi esse impulso do meu irmão em achar que eu tinha uma voz de rádio.
Depois na rádio houve uma oportunidade para alargar esse gosto pela música?
Claro. Depois comecei a fazer emissão e comecei a gostar cada vez mais e mais de música e… já são 32 anos a fazer rádio e a conhecer música. Sempre mais música antiga e moderna, o quer que possamos chamar à música antiga que me parece muito moderna e à moderna que me parece antiga. Sim, depois fui alargando o meu conhecimento musical e também teve que ver com as rádios por que passei: a TSF foi uma rádio onde estive muito tempo, mas tinha um cariz mais jornalístico, de informação; e depois da Radar, onde estive nestes últimos 15 anos, aí sim, foi dar largas ao meu universo musical.

▲ O livro de Inês Meneses resulta de uma coletânea de pensamentos
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
No Caderno de Encargos Sentimentais escreve: “As canções seguram um momento que já não existe. Por isso voltamos a elas tantas vezes.” A música é a sua terapia? Do que é que a música já a salvou?
Ah… de tudo, de momentos muitos tristes, de segundas-feiras cinzentas, de desilusões com pessoas, de dias vazios. A música é terapêutica, tem uma capacidade agregadora, junta-nos a outros que ouvem a mesma canção que nós, arrepia-nos. A música mexe com muitos sentidos: quando estamos num concerto ao vivo, estamos a ouvir a música, a senti-la, a nossa pele ressente-se do impacto da música em nós. A música tem essa capacidade. Como digo nesse pensamento, a música cristaliza o momento, quando voltamos a essa canção é como se tivéssemos a rever uma fotografia que nos lembra várias coisas. Quando ouvimos aquela canção lembramo-nos das pessoas, do momento que vivemos, de como éramos, do que sentimos, às vezes há até a tendência em querer voltar a esse momento como quem quer voltar a ver uma fotografia.
A música é memória?
É, é memória. É uma parte de nós. É uma espécie de membro. Para mim — atenção que não será para todos, também há pessoas que dizem que a música não terá tanta importância para elas — a música é uma espécie de mais um braço, mais uma perna. Eu não seria mesma se ficasse privada da escuta de música.
Há uma passagem no livro em que descreve como está a jantar com a sua filha e ambas estão a ouvir um disco de vinil. Escreve também que gostava que uma dia ela dissesse “a minha mãe gostava deste disco”…
Sim, os Everything But the Girl.
… por que músicas gostava de ser lembrada?
Por esse disco, por exemplo. Mas sobretudo por essa banda. “Everthing But the Girl” é uma espécie de dueto que se eterniza na minha vida, ao qual volto sempre porque souberam manter-se… são intemporais, foram sempre elegantes. Ainda nem eles sabiam que iam ser elegantes daí a 30 anos e já o eram e continuaram a ser. A minha filha associa-me muito — para o bem e para o mal — à Sade Adu. A Sade é alguém que oiço muito, é alguém que aprecio muito porque, para mim, na altura em que a ouvia muito nova, adolescente, ela era uma espécie de rainha, de musa, que tinha uma invulgar elegância em tudo, na forma como cantava, dos saxofones com que enfeitava a música, nos penteados… A roupa que a Sade usava na altura poderá ser usada agora sem se sentir qualquer desfasamento com o presente, tudo faz sentido. E a Sade tem uma coisa que aprecio imenso, que falo muitas vezes, ela retirou-se na altura que achava certa para ela. Em vez de ter a tentação de continuar a eternizar-se e a tentar ser “moderna”, a determinada altura decidiu que não queria mais o mediatismo e foi viver a vida dela, afastou-se, reconstruiu uma casa no campo e todos nós temos hoje a Sade como uma espécie de musa — alguém que se soube retirar e permaneceu intemporal.
Também escreve: “Não me sinto especial por gostar de uma banda que mais ninguém conhece.” Mas há quem se sinta… Qual é a sua opinião sobre a arrogância, sendo isso ou não arrogância?
Escrevi esse pensamento por causa dos The National. Lembro-me de os acompanhar praticamente desde o início e, na altura, ainda não havia muita gente a gostar deles. No último concerto que vejo deles sinto o maior orgulho por fazer parte daquele público cada vez maior, que canta aquela canção, que a sabe de cor. Eu não quero ser a única a saber de cor aquela canção, quero fazer parte da multidão que cresceu com eles e que se sente arrepiada a ouvir um coliseu inteiro a cantar. Portanto, se em determinada altura tive alguma arrogância, no passado posso ter tido ao querer quase reclamar essa banda só para mim, acho que todos temos essa tentação, hoje em dia sinto o contrário, sinto-me especial por fazer parte de uma multidão que está emocionada a cantar a mesma canção.
https://www.youtube.com/watch?v=JEJsegRQzPQ
É nessa lógica de partilha que também nasce este Caderno de Encargos Sentimentais? No sentido de as pessoas poderem ganhar algo ou refletir a partir dos seus pensamentos?
Sendo eu própria a dizer parece um pouco pretensioso, mas a partir do momento em que alguém me diz “Acho que isto dava um livro”, eu avanço para a recolha desses parágrafos, desses pequenos textos que fui acumulando no Facebook, com o estúdio da Lavandaria, com quem trabalho e com quem já tinha trabalho antes. O estúdio pensou neste caderno, nas cores, escolheu a forma como os pensamentos iam estar ordenados e assim nasceu o caderno. Não me sinto desiludida com essa opção. Nós começámos por fazer edição de autor e esgotámos as três primeiras edições; depois, a Contraponto manifestou interesse em editar o livro. A partir daí deixou de ter aquele carácter quase personalizado, porque cada capa era feita à mão, em serigrafia, mas o livro foi cumprido no essencial, de acordo com o projeto original, tendo agora o bónus do Valter Hugo Mãe, uma pessoa que admiro muito e que foi muito generoso comigo e com o livro. Fez um prefácio que me orgulha muito.
Como é que surge esta ideia de partilhar pensamentos no Facebook? Recorda-se da primeira que o fez?
Não me lembro. Comecei no Facebook em 2008, há 12 anos. Lembro-me que, a partir de determinada altura, comecei a perceber que podia escrever outro tipo de coisas, mas não me lembro qual foi o primeiro desses parágrafos, se lhe quisermos chamar assim. [Na atura] refletia mais um pouco, não era só pôr uma canção, um videoclip. Há aqui pensamentos mais recentes e outros bem mais antigos, sendo que teria obviamente muitos mais. Estes foram escolhidos para estarem aqui.
Sente que, com o passar do tempo, as pessoas foram-se identificando com estes “parágrafos”?
Sim, muito. Senti isso, sim. Esse feedback era imediato. Tive isso em conta ao escolher os parágrafos que, para além de contarem uma pequena história ou de terem um contexto particular, também tinham dito qualquer coisa às pessoas. No fundo, procurei uma linguagem com a qual as pessoas se identificavam, um sentimento, uma canção, um momento. Muitos parágrafos tinham comentários que diziam “eu também já senti sito” ou “eu também vejo assim”. Não que as pessoas tenham de estar sempre de acordo com aquilo que escrevemos, evidentemente. Mas o que fui escrevendo, que nunca foi pensado para ser um livro, chegava de certa forma às pessoas. Para mim era o mais importante, ainda é o mais importante.
É possível que partilhe estes desabafos também por achar que as pessoas andam desligadas de si mesmas, sem se conhecerem no seu íntimo?
Na origem nunca está se o outro vai parar para pensar. Na origem de cada pensamento está o meu próprio pensamento. Não há aqui nada de “eu acho que o mundo é assim”, não, este é o meu mundo e fui partilhando bocadinhos dele ali no Facebook, como podia ser no Instagram, como o é com as pessoas que amo. Nunca pensei “vou escrever isto de maneira a que o outro possa refletir”. Não, escrevia como desabafo, mais pelo lado curioso. No fundo, estás a escrever para ti mesma sabendo que outros te vão ler. Uns identificam-se, outros não.
Escreve para si própria algumas coisas que os outros não chegam a ler?
Raramente não partilho. Tenho aqui duas ou três notas guardadas para memória futura, no telemóvel, mas tenho sempre este impulso de observar, anotar e, neste caso, publicar. Sendo que a ideia de partilha é uma coisa muito altruísta, mas também pode ser vaidade, podemos ver as coisas sempre pelos dois prismas. Se as pessoas não gostam de ti pensam que é por mera vaidade ou mera ostentação. Isto dependente sempre de quem vê. Na origem, publico porque senti aquilo em determinado momento, então, tomo nota e construo um parágrafo ou dois — ou até uma linha — que me façam sentido para resumir o momento. A interpretação fica a cargo de caga um.
O prefácio de Valter Hugo Mãe apresenta o livro como sendo uma “armadilha sentimental”. Como interpreta isso?
Pensando na extrema generosidade dele, sendo ele um escritor tão valioso, penso que está a dizer que é uma armadilha sentimental porque acabamos presos, penso eu, a pensar em quatro ou cinco palavras tão simples — não há palavras caras aqui — que nos fazem sentido. Lá está, algumas palavras podem ir mais diretas ao coração. A armadilha sentimental é essa. No fundo, não precisamos de grande folclore académico para chegar ao coração das pessoas, precisamos é de dar ordem aos sentidos, aos sentimentos. O que temos aqui são coisas muito simples que na altura fizeram sentido para mim, portanto, escrevi-as assim. Podem ser uma armadilha sentimental porque, de tão simples que são, acabam por nos reter e fazer pensar um bocadinho — isto dito pelo Valter Hugo Mãe, que é um escritor tão precioso, tem outro peso. Quando li o prefácio dele fiquei muito surpreendida e emocionada. Como é que alguém tão importante como ele estava a encontrar sentido nestes parágrafos?
Diz que o amor tem muitas formas e muitos caminhos. Na sua opinião, acha que podemos cometer o erro de apostar todas as fichas no amor romântico?
Esse é o amor em que queremos sempre apostar. Acho que todas as pessoas que vêm ao mundo deviam ter direto a viver uma grande paixão, isso é o que carimba a vida. É o que dá sentido. Ninguém se devia ir embora deste mundo sem ter estado apaixonado porque nenhum sentimento se assemelha a esse. Mas como o mundo não está muito propício a grandes amores — desinvestimos um pouco no amor pela forma como fomos descartando as pessoas —, se as pessoas não puderem viver uma paixão dessas assim arrebatadoras, que vivam a amizade, que vivam esse amor entre os amigos, que façam o bem o mais possível, mesmo entre pessoas que conhecem menos. Sei lá, o amor não se esgota nessa paixão arrebatadora, mas o ideal era todos podermos vivê-la, até para escrevermos livros, escrevermos canções e fazermos filmes. Nem que a seguir venha um desgosto enorme que nos faça escrever os mesmos livros e as mesmas canções, fazer os mesmos filmes ou, quem sabe, pintar um grande quadro. Mas se não podermos viver essa paixão arrebatadora, que possamos viver o amor entre família, amigos e conhecidos. Enfim, que se procure o amor pelos diversos caminhos.
“Uma noite, no Lux, um rapaz pouco sóbrio disse-me a rir: ‘O meu sonho era que um dia me pudesses dizer ao ouvido Bom dia Lisboa. Podes fazer isso?’. E eu disse que sim. Ficámos amigos. Quem tem boca chega ao coração.” Pág 11
Também escreve “Quem tem boca chega ao coração”. Também na sua opinião, será que não arriscamos vezes suficientes? Temos demasiado medo de falhar?
Eu acho que nem é receio, nós temos vergonha, muita vergonha. Temos, talvez, receio do ridículo. Na entrevista com a cantora Maria João, no [podcast] “Fala com Ela”, ela dizia-me “eu paro as pessoas na rua e digo ‘que bonito é o seu vestido, onde é que o comprou?'”. Às vezes engolimos em seco tudo o que não dissemos por vergonha, porque temos medo que, ao dizer a alguém mais conhecido que gostamos do seu trabalho, essa pessoa não nos ligue e nos vire as costas. Para mim foi sempre um pouco ao contrário. Curiosamente, sempre fui muito de dizer aquilo que sentia e ainda sou assim.

▲ Inês Meneses é radialista há mais de 30 anos
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Fala da curiosidade como um bem essencial da vida. É hábito seu questionar-se com frequência? É curiosa de si própria?
Sou muito, fui sendo mais com a idade. Penso que com a idade também se ganha outra consciência. Antes era como se não tivesse nem corpo nem consciência. Até determinada altura somos um pouco levados e, depois, há determinados factos na vida que nos fazem parar obrigatoriamente, que nos fazem pensar. A partir desse momento começamos a questionarmo-nos. Se quiseres dar ouvidos a ti própria vais ouvir coisas muito boas e muito más. É escolher se queremos mudar um bocadinho ou não.
Estava a falar de que até uma certa fase das nossas vidas somos levadas e levados…
Por uma certa inconsciência de que quando somos novos parece que estamos protegidos, há uma ideia de invencibilidade, nunca pensamos que morreremos, que vamos passar por tristezas profundas, que não vamos estar a salvo de determinadas coisas. Mas tudo isso vai acontecer-nos ao longo da vida, é inevitável. Ninguém passa pela vida sem sofrimento. A pessoa mais rica do mundo tem angústias e vazios como qualquer outra. Nunca vamos ser poupados do sofrimento, mas até determinada altura somos levados… Afinal, começamos a vida a brincar. As crianças que têm esse privilégio podem brincar e ser levadas pela brincadeira. No início comemos, dormimos e brincamos. Depois há um momento em que paramos para pensar porque determinado facto nos obrigou a isso. O primeiro desgosto de amor: “Isto aconteceu porquê? Porque não sou bonita, não sou suficientemente inteligente? Porque devia ter estado mais presente? Porque ela procura outra coisa ou porque ele quer mais do que isto?” Ou quando somos rejeitados na escola. Há determinadas circunstâncias que nos fazem ganhar consciência. Mas até aí somos levados, acreditamos no poder dos desenhados animados. Depois vamos crescendo e acabam-se os desenhos animados.
Usando uma expressão sua, sente que já viveu “como o caraças”?
Sinto, sinto que já vivi como o caraças. Sinto, digo muitas vezes isso à minha filha. Como comecei a trabalhar cedo, aos 16 anos, e desde logo a contactar com pessoas, dentro e fora da rádio, como fui lendo muito, vi muitos filmes, colecionei muitas coisas e emoções, sinto realmente que vivi como o caraças. Até porque sempre tive, e isso é importante, a tal curiosidade. Isso tanto pode passar por um disco que nunca ouvi, como por um prato que nunca comi ou um vinho que nunca bebi: viver como o caraças é arriscar esse desconhecido.
Inês Meneses e Júlio Machado Vaz lançam livro. “Passamos pelo amor como o Alfa passa por apeadeiros”
Penso que já antes fiz esta pergunta. Depois de tantos anos — mais de dez —, afinal o que é o amor [referência ao podcast “O Amor É”]?
Ai, também já disse isso muitas vezes. Dizia no início que o amor era admiração e depois passei a dizer que era cuidar. É a soma dos dois, admirar e cuidar. Admirar é fácil, há muita gente passível e possível de admiração e o mais difícil é cuidar e termos disponibilidade para cuidar. Portanto, com a consciência que ganhei ao longo dos últimos anos, percebi que não bastava admirar, que era preciso — utilizando um verbo antigo — estimar. Estimar as coisas. Sou do tempo em que nós na escola encapávamos os livros, comprávamos um rolo enorme de papel bonito para forrar os livros da escola. Havia essa ideia de estimar porque era um bem precioso. Se calhar deixámos de estimar. Não me lembro de alguma vez ter dito esta palavra uma entrevista, mas se calhar falta-nos esta estima pelo outro e pelas coisas.
Isto é quase um voltar ao início da entrevista, da raridade que os livros na infância eram para si…
Sim! É isso mesmo. Lembro-me praticamente de todos os bonecos que tive, das roupas e dos sapatos porque não tive muitos. Tudo aquilo era muito estimado. E como já disse, era capaz de dormir com os sapatos por gostar muito deles.
Para combinar com os sapatos… se a capa do livro fosse o padrão de um vestido, usá-lo-ia?
Claro. As capas dos livros foram baseadas num vestido [a edição agora à venda representa a quarta capa]. Todos os padrões são padrões que uso e aprecio. Estas cores em particular foram baseadas um vestido usado pela Diana de Gales nos anos 80. Não o padrão, mas as cores: o vermelho e o rosa são baseados nesse vestido que abotoava pelos ombros até ao joelho. Quando o vi, pensei “que arrojo, usar vermelho e rosa!”, o que era, à partida, uma combinação que poucos fariam. Lembrei-me disso e pedi vermelho e rosa na capa. Os padrões são aqueles que uso, chita, tigre, essas coisas. As cores representam o arrojo de um vestido que vi nos anos 80.
A Diana teria feito anos no dia 1 de julho…
Lembro-me perfeitamente do dia em que ela morreu, lembro-me de receber a notícia e de ficar absolutamente chocada.
Recorda-se de onde estava?
Perfeitamente. Estava em casa, na altura vivia em Campolide, e lembro-me do choque da notícia. E quando vou de carro num túnel lembro-me sempre dela, da morte dela. É raríssimo ir num túnel — acontece mais com pessoas que não conheço, como ir num táxi — e não me lembrar. Acho que foi uma figura que desvalorizei na altura em que era mediática e, depois, comecei a ter mais curiosidade sobre ela…
Talvez fique eterna tal como a Sade.
Sim, sim. Em relação à Sade percebi sempre isso, que ela era diferente e cautelosa. A Diana teve tudo menos essa cautela, foi muito açambarcada pelo lado mediático… acho que nenhum de nós queria estar no lugar dela e eu desvalorizei-a um pouco porque achei que, se calhar, ela aparecia em demasia. Mais tarde comecei a achar que a percebia e a valorizá-la mais. E pronto, fica a homenagem do vestido vermelho e rosa na capa do caderno.
E a estima à Diana também.
E a estima, exatamente.