A 23 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin preparava-se para dar a ordem de invasão da Ucrânia. Há 105 anos, na então capital russa, numa altura em que o mundo estava de olhos postos num outro conflito bélico, a Primeira Guerra Mundial, uma onda de manifestações estava prestes a mudar para sempre a história da Rússia.
Nessa data, 23 de fevereiro de 1917, começou, na cidade de Petrogrado, a antiga São Petersburgo, a Revolução Russa. Inicialmente, um movimento popular de protesto contra o racionamento de alimentos imposto por causa da guerra, sem qualquer ligação ou reconhecimento partidário, tornou-se uma revolta que acabou por alastrar-se a outras fações da sociedade russa (incluindo ao exército) e por levar, no espaço de apenas alguns dias, à queda da capital imperial, do governo do czar e da monarquia, com a abdicação de Nicolau II no início de março. A longo prazo, os protestos e greves de fevereiro, que as autoridades de Petrogrado decidiram no início ignorar, teriam um impacto profundo na vida política e na história russa, e também ocidental, com a criação da União Soviética, em 1922, e a ascensão de Estaline, alguns anos depois.

▲ A 25 de fevereiro de 1917, havia mais de 200 mil trabalhadores e estudantes parados em Petrogrado
Universal History Archive/Univer
Desde o início do ano que era evidente que as tensões acabariam por escalar em Petrogrado (um nome “menos alemão”). Há vários anos que os trabalhadores estavam descontentes com as condições de trabalho e habitação, que só pioraram com o início da guerra. Os salários tinham subido na sequência do aumento da produção de armamento, mas era impossível acompanhar a inflação, cada vez mais alta. A esta situação veio juntar-se a deterioração das condições de habitação, das infraestruturas sanitárias e dos cuidados de saúde primários, o que levou à organização de duas grandes greves, nos meses de dezembro de 1915 e de 1916, interrompidas com dificuldade pela polícia política.
O descontentamento popular era geral. Fazia-se sentir noutras cidades russas, como Moscovo, mas era em Petrogrado que tinha maior expressão. No início de janeiro de 1917, uma nova greve juntou cerca de 140 mil manifestantes nas ruas da capital imperial. Cerca de um mês depois, numa altura em que a escassez de mantimentos atingia níveis críticos (no final de janeiro, a carne tinha acabado), um novo protesto juntou 90 mil trabalhadores de 58 fábricas. A população tinha fome e o governo parecia incapaz de resolver o problema. O presidente da Duma, Mikhail Rodzianko, pediu ao czar que reforçasse os poderes do parlamento para que fossem tomadas medidas, mas Nicolau II, que insistia em permanecer agarrado à cadeira do poder absoluto, recusou.
A Rússia de Nicolau II não era a mesma dos seus antepassados. Exigia mudanças. Porém, o czar, um autocrata convicto, fez de tudo para impedir que o sonho de uma monarquia constitucional se tornasse real. As poucas modernizações que aconteceram durante o seu tempo no poder, ocorreram não porque quis, mas porque as circunstâncias o obrigaram a isso. Foi o caso da criação da Duma, a assembleia legislativa. Nicolau permitiu a sua instituição em 1915, mas fê-lo contra a sua vontade, procurando sempre dificultar o trabalho dos deputados e ministros, nos quais nunca chegou a confiar plenamente. As substituições foram inúmeras e só com grande dificuldade é que a Duma conseguia atuar de forma efetiva na resolução dos problemas do país.

▲ Descontente com o desempenho dos seus generais, Nicolau II decidiu assumir o comando do exército russo na Primeira Guerra Mundial
Getty Images
A 19 de fevereiro, o governo anunciou o racionamento do pão. A medida levou a população esfomeada ao desespero — os habitantes de Petrogrado atacaram as lojas da cidade em busca de comida. Alguns dias depois, voltaram a sair à rua para se manifestarem contra a escassez de alimentos, o czar e o governo. A 23 de fevereiro, pelo menos 130 mil trabalhadores terão feito greve. A estes, juntaram-se um número significativo de mulheres, que celebravam o Dia Internacional da Mulher (fevereiro na Rússia já era março, de acordo com o calendário juliano que seguiam e não o ocidental, o gregoriano). As autoridades pouco ou nada terão feito para parar os manifestantes, que continuaram a encher as ruas nos dias seguintes. De acordo com a Enciclopedia Britannica, estima-se que cerca de 30% de todos os trabalhadores se tenham juntado ao movimento, que acabou por atrair também soldados e cossacos, designados para vigiar os manifestantes.
A 25 de fevereiro, havia mais de 200 mil trabalhadores e estudantes parados em Petrogrado. Alguns deles envolveram-se em confrontos com a polícia. A czarina, que estava na capital mas que não parecia ter noção dos acontecimentos, escreveu ao marido na frente de batalha para o assegurar que tudo haveria de passar, “de certeza”. Nicolau, que tinha assumido o comando do exército russo na Primeira Guerra Mundial, outro erro estratégico que lhe saiu caro, estava em Mogilev (na atual Bielorrússia), na Frente Oriental. Alexandra descreveu as manifestações como “uma campanha de selvagens, com rapazes e raparigas correndo pelas ruas em clamores de que não têm pão”. Mikhail Rodzianko, mais perspicaz do que o próprio governante, terá dito, segundo Manuel S. Fonseca, autor de Revolução de Outubro: “Alguma coisa se quebrou hoje e a máquina do Estado está a descarrilar”. O rumo da história prová-lo-ia certo.
O grande embate entre as forças populares e czaristas aconteceu a 26 de fevereiro. Nesse dia, uma centena de pessoas morreu após as tropas imperiais terem disparado sobre os manifestantes. Sergey Khabalov, o governador militar da cidade, tinha recebido ordens do czar para que acabasse com o movimento grevista. Ao saberem do sucedido, os regimentos que não estiveram envolvidos no tiroteio saíram dos quartéis e confrontaram os militares e polícias que tinham atacado os cidadãos de Petrogrado. No dia seguinte, havia cerca de 66 mil soldados dos lados dos manifestantes. Após um tiroteio, as tropas imperiais renderam-se. E a cidade caiu perante a revolução.

▲ Nicolau recusou-se a passar o trono ao filho, Alexei, que sofria de hemofilia e tinha uma saúde frágil
Getty Images
Os membros da Duma, que tinham sido obrigados a fugir, queriam preservar a monarquia e tentaram chegar a um acordo com os revolucionários — propuseram a formação de um governo provisório e a abdicação de Nicolau II a favor do filho, Alexei, de 12 anos. Para surpresa de todos, o czar concordou em abdicar, mas não quis que o trono passasse para o filho. O czarevich tinha hemofilia, uma doença crónica que afeta o mecanismo de coagulação do sangue nos homens. A hemofilia era comum na família de Alexandra Fyodorovna. Um dos seus irmãos, Friedrich, e um dos filhos da sua irmã Irene tinham morrido devido à doença. Nicolau e Alexandra sempre tentaram esconder o verdadeiro motivo da saúde frágil de Alexei, incluindo da própria família.
No documento de abdicação, Nicolau disse que não queria ser afastado do filho e, por essa razão, passava a sucessão ao irmão, o grão-duque Mikhail Alexandrovich Romanov, abençoando-o. Misha, como era conhecido entre amigos e familiares, estava em Petrogrado quando os membros da Duma lhe bateram à porta para o informar de que era o novo imperador de toda a Rússia. Apanhado de surpresa, Misha iniciou negociações, mas acabou também por escolher abdicar. No espaço de apenas alguns dias, a dinastia Romanov, que governava a Rússia sem interrupções desde o século XVI, tinha caído. Com ela, caiu a monarquia russa.
Agora, a nova guerra russa foi declarada também a 23 de fevereiro por Putin e Biden diz que esta invasão da Ucrânia tem “pretensões imperiais”. Coincidências? Durará apenas também apenas alguns dias?