“É só mesmo uma grande paixão, no fim de contas”
Passavam poucos minutos das 16h quando Sandra de Preux, brasileira residente na Suíça de 55 anos, justifica o facto de estar há duas horas à espera para ver o autocarro do Bayern sair da unidade hoteleira de luxo onde esteve alojado. Faltavam ainda umas horas para a final da Liga dos Campeões no Estádio da Luz, contra os franceses do Paris Saint-Germain, mas esta “super-adepta” já vivia o espírito do grande jogo pelo menos há um dia.
“Já fotografei o autocarro do PSG ontem, lá no hotel deles”, conta. “Cheguei aqui eram quase quatro horas da tarde mas ficaria até às oito. Estou tranquila, não tenho pressa…”, acrescenta. Sandra acompanha o mundo do futebol de topo desde 1998, ano em que se mudou do Brasil para a Suíça e foi assistir ao Mundial que nesse ano foi celebrado em França. Desde então já assistiu a quatro finais da Liga dos Campeões (2016, 2017, 2018 e 2019), uma mão cheia de eliminatória desta competição, Jogos Olímpicos e até Mundiais.
“Sempre fui apaixonada por futebol. Torço por uma equipa em cada país. Em Itália sou do Milan, em Portugal do Benfica e na Alemanha sou do Bayern”, afirma. Todas estas equipas têm a cor vermelha em comum e Sandra diz que talvez seja isso que a puxa mais para um clube e não outro. É precisamente por isso que torcia pela equipa de Munique mesmo admitindo alguma “divisão no coração” – afinal, do outro lado do campo iriam brilhar três compatriotas, Marquinhos, Thiago Silva e Neymar. “Acho que vai ficar 3-1 para o Bayern. O Lewandowski faz hat-trick e o Neymar marca também”, remata. O astro polaco não marcou (e não ultrapassou o recorde de golos de Cristiano Ronaldo), Neymar não fez o gosto ao pé mas a verdade é que a “orelhuda” foi parar às mãos dos bávaros.

▲ Sandra de Preaux foi a fã mais dedicada do Bayern de Munique em Lisboa. D.R.
Todas as equipas deviam ter adeptos assim: dedicados, confiantes e apaixonados. Todas as equipas certamente os terão, contudo, enquanto o exemplo de Sandra era praticamente único à porta do Penha Longa Resort, o hotel onde estava alojada a comitiva do Bayern (e não só): as várias pessoas que se viam nesta zona eram jornalistas. Adeptos? Só Sandra e um casal com dois filhos pequenos que chegou já quase o autocarro tinha ido embora. Ao menos o pai e o filho levavam uma camisola dos bávaros. A uns bons quilómetros daqui, junto ao quartel-general do PSG, o cenário não podia ser diferente.
Mais um dia de “Neymarmania” na zona da Expo
Aquilo que de um lado estava em falta, do outro havia em demasia. O cenário à porta do hotel Myriad by Sana não podia ser mais diferente daquele que se podia ver em Sintra. O barulho da natureza e dos carros a passar dava lugar a um sem fim de gritos, assobios e outros sons que rompiam o silêncio assim que se via um jogador do PSG a atravessar uma zona de vidro visível da parte de fora do hotel. Nem se notava que os franceses tinha sido votados numa sondagem do desportivo L’Equipe como a equipa mais odiada de França. Mas quem lá estava, estava a torcer pelo clube? De certa forma sim. Contudo, bastava olhar para os nomes nas centenas de camisolas que por lá andavam para perceber que o grande chamariz era o brasileiro Neymar – bastava sentir-se o cheiro do astro brasileiro para os decibéis subirem a pique. Até mesmo sendo finalista vencido o jogador formado no Santos era quem mais surgia por todo o lado, das televisões às redes sociais.

▲ A "discreta" saída do Bayern da luxuosa unidade hoteleira onde estavam hospedados. Diogo Lopes/Observador
Diogo Lopes/Observador
Enquanto à porta do hotel do Bayern o ambiente estava são solene que mais parecia o acesso a uma cimeira do G20, o cenário em Lisboa, na zona da antiga Expo, reinava um clima de festival de verão. Muitos jovens brasileiros, franceses e portugueses (a maioria destes assistia a tudo mais ao longe) cantavam, gritavam por Neymar, por Mbappé. De um modo geral, as plateias eram o reflexo cristalino das equipas: o Bayern mais sério e cerebral vs. um PSG espalhafatoso e emotivo. O exemplo de Neymar e da sua coluna eram a prova disso mesmo já que na sua estadia em Lisboa o craque fez-se sempre acompanhar de um sistema de som enorme e bem audível – à saída para a final lá estava ela de novo, a gritar uma mistura de funk brasileiro com reggaeton – e um dos grupos mais animados à porta do Myriad era precisamente um conjunto de jovens franceses que volta não volta faziam soar as suas próprias colunas e irrompiam num show off dançarino.
Uma das coisas mais curiosas desta final foi precisamente perceber o quão diferentes eram os seus intervenientes e a forma tão clara como isso se percebia em quase tudo, do momento das saídas dos hotéis ao tipo de adeptos, passando por estilo de jogo e, claro, a própria escolha do alojamento.

▲ À saída para o Estádio da Luz, Neymar (como sempre), foi o motivo de loucura de centenas de fãs. Filipe Amorim/Observador
FILIPE AMORIM
Paz e sossego, o segredo dos alemães
Olhando para trás no tempo é fácil de ver algumas semelhanças entre o percurso da seleção nacional da Alemanha que venceu o mundial de 2014 no Brasil e este Bayern que sai de Lisboa com mais um troféu da Champions debaixo do braço. Manuel Neuer e Thomas Müller estiveram nos dois cenários, por exemplo. Em ambos os casos as equipas dinamitaram por completo a sua concorrência jogo após jogo e até houve nos dois planos uma goleada histórica – o 7-1 contra a “canarinha” e o 8-2 contra o Barcelona. Uma dessas parecenças tem também a ver com o alojamento das comitivas.
Contrariando as direções da FIFA e o senso comum de qualquer pessoa minimamente precavida, a seleção alemã em 2014 escolheu como base uma localidade na zona da Bahia que só se conseguia aceder atravessando um rio. De barco. A escolha da localidade de Santo André, em Santa Cruz Cabrália (extremo sul baiano) teve as suas polémicas – alegadamente foi construída de propósito para cumprir os requisitos da federação alemã ainda antes desta saber que iria ter os seus jogos nessa zona do Brasil – mas a verdade é que o centro de treinos que lá estrearam foi um oásis de tranquilidade, de tal forma que muitos treinadores e comentadores questionavam se a proximidade da praia não era até um sinal de desleixe. Não era, claramente, e permitiu que os alemães vivessem o seu mundial em sossego máximo e segurança, sem assédio de fãs ou jornalistas. Ao Parque Natural Sintra-Cascais, onde o Bayern passou os últimos dias, só faltava ter praia a cinco minutos a pé para ser exatamente igual ao cenário de Santo André.

▲ Foi esta a luxuosa e discreta "casa" do Bayern Munique em Lisboa. D.R.
O Penha Longa Resort, que é propriedade do grupo internacional de luxo Ritz Carlton, preenche todos os requisitos – até supera muitos deles – que os alemães parecem procurar desde que perceberam, nesse mundial em que sairam vitoriosos, que no recato e sossego é que está o ganho. Rodeado de natureza e acessível por uma estrade estreita de dois sentidos, esta unidade hoteleira tem um total de 194 quartos e suites, jardins, lagos, piscinas e até um campo de golfe. O melhor de tudo é que se encontra numa zona vedada do público geral, só acessível através de um ponto de segurança que o Observador pôde ver que estava devidamente reforçado com a ajuda da GNR.
Na mesma linha estilística do hotel esteve também o campo de treinos utilizado pelos alemães, o Parque Desportivo Municipal mafrense: foi o que estava mais longe de todos os que foram utilizados e pouco ou nada se soube daquilo que nele aconteceu. Tudo isto a antítese, novamente, dos franceses.
Sobre os treinos do PSG até nem se soube muito, apenas que decorreram na Academia do Sporting, em Alcochete. Agora pormenores sobre a estadia no hotel lisboeta que mora na Torre Vasco da Gama, mesmo tendo em conta todo o sigilo e contratos de confidencialidade, foram-se conhecendo. Discrição não é o ponto forte dos finalistas vencidos que ficaram com todo o Myriad by Sana só para si. O hotel tem a porta de acesso visível a quem quer que passe por aquela zona do Parque das Nações, as estruturas de vidro permitem ver algumas deslocações dos atletas e tudo isso só cativou ainda mais os curiosos que queriam acompanhar tudo o que se passava, daí ter havido um reforço de segurança (maior ainda do que aquele que a cadeia hoteleira já tinha feito noutra unidade sua em Lisboa onde ficou alojado o Atl. Madrid).

▲ O hotel onde ficaram as estrelas do Paris Saint-Germain é na antiga Torre Vasco da Gama, símbolo da Expo 98. D.R.
A mentalidade de celebrar a Champions pensando já na próxima
O objetivo deste texto era para mostrar um pouco daquilo que foi a final da Liga dos Campeões 19/20 mas tudo o que o Observador foi conseguindo ouvir e observar fez com que passasse a ser sobre isso, na mesma, mas também sobre as diferenças que tanto separam os dois lados deste jogo. Não é muito comum ver dois rivais com a sua identidade cristalizada de forma tão abrangente e uniforme. Até a forma como assistiram à partida mostra isso.
Quando o Observador chegou à cervejaria lisboeta “O Reserva” faltava uma hora para o começo da partida e o espaço já estava composto. Cumprindo todas as normas de segurança, o espaço ia recebendo os adeptos de futebol que, não podendo estar no estádio, vibrariam fora dele. Inicialmente eram mais portugueses, os franceses foram chegando depois. No total, quando o apito inicial soou nos televisores, avistavam-se apenas duas camisas de futebol, uma do Bayern e outra do PSG. Mesmo assim, os adeptos franceses eram facilmente reconhecíveis sem terem de usar insígnia nenhuma.
O natural entusiasmo de ver a sua equipa participar numa final da Champions pela primeira vez (ainda para mais no ano do 50.º aniversário), a esperança de ver o futebol gaulês de equipas ganhar um novo fôlego internacional e o efusivo modo de ser fazia com que se visse a léguas quem puxava pelos franceses: barafustavam com tudo, vociferavam tanto nos ataques da sua equipa como no dos adversários, gritavam contra o árbitro. Uma das mesas com mais franceses tinha um português, Diogo Gonçalves, que explicou ao Observador que os seus amigos estavam entusiasmados com o simples facto de ver a sua equipa neste patamar do futebol mundial – talvez o mais relevante a seguir à final do Campeonato do Mundo – independentemente de ganharem ou não. Desportivismo é sempre de louvar mas o esbracejar dos franceses não enganava ninguém. A fome pela vitória era gigante.

▲ Bayern Munique, os cerebrais vencedores desta peculiar edição da Liga dos Campeões.
Getty Images
Noutro lado da cidade, perto do Cais do Sodré, o Time Out Mercado da Ribeira foi outro ponto onde se viu a vitória do Bayern por 1-0 (golo de Kingsley Coman, um francês que ironicamente fez a sua formação no PSG). Quem tivesse conseguido sobreviver às longas filas de acesso ao interior do espaço descobriria o recinto dividido em dois, um ecrã gigante em cada ponta, e um contingente alemão mais composto – mesmo assim menor que o francês. O cenário d’O Reserva repetia-se: franceses irrequietos contrastavam com os alemães que praticamente só se fizeram notar por três vezes: quando marcaram o golo, quando aos 80 minutos entoaram um cântico e quando soou o apito final e celebraram a conquista durante uns breves minutos. Tudo sempre com moderação e tranquilidade. Como em tudo o resto.
Numa das eliminatórias desta fase final da Champions em Lisboa surgiram imagens do PSG a celebrar a passagem à final como se fosse um grande baile – com a coluna de Neymar, claro. Viu-se também Joshua Kimmich, o defesa direito dos bávaros, no pós-goleada ao Barcelona a sentar-se no banco a beber uma água de forma compenetrada. Estes dois exemplos fecham esta espécie de análise do yin e yang que são estas equipas. Os bávaros acabaram por ganhar mais uma vez, houve a festa mas no final não se viu nenhuma coluna de som. Porquê? É preciso começar já a pensar na próxima conquista.