Difícil, mas, teoricamente, não impossível. Altamente improvável, ainda assim. Apesar do aumento do número de casos de Covid-19, apesar dos riscos de infeção que os próprios candidatos enfrentam, apesar dos óbvios constrangimentos na campanha eleitoral e, presumivelmente, no acesso dos eleitores ao voto, a maioria dos constitucionalistas ouvidos pelo Observador entende que as atuais disposições legais não permitem adiar as eleições presidenciais. Há exceções, claro, mas a leitura dominante é a de que uma decisão desta natureza só teria fundamento em cenários muito concretos que não estão verificados.

Que cenários? Aquele que está previsto no artigo 30.º da Lei Eleitoral do Presidente da República, o mais drástico: “Em caso de morte de qualquer candidato ou de qualquer outro facto que o incapacite para o exercício da função presidencial, será reaberto o processo eleitoral”. Ou seja, se um dos candidatos morresse ou ficasse de tal forma impedido de exercer as funções atribuídas a um Presidente da República as eleições seriam suspensas e o processo voltaria à estaca zero, incluindo a recolha de assinaturas.  Não é isso que está em causa.

E mesmo que Marcelo Rebelo de Sousa e outros candidatos presidenciais venham efetivamente a testar positivo à Covid-19 tal não seria impedimento para a realização das eleições. Tal como explicava aqui o Observador, não é sequer líquido que a entrada de qualquer um dos candidatos numa Unidade de Cuidados Intensivos seria motivo para adiar as eleições.

O que acontece nas Presidenciais em Portugal se o candidato ficar infetado com Covid-19?

“Estão reunidas, de momento, todas as condições para realizar as eleições. Obviamente, estando em pandemia, a situação é anormal, pelo que não se pode esperar que tudo decorra em total normalidade. Mas só se fosse objetivamente impossível realizar as eleições, por qualquer fator imprevisível é que se poderia considerar o adiamento”, sintetiza ao Observador Jorge Reis Novais, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Jorge Lacão, constitucionalista e deputado do PS, concorda. “Não vejo nenhuma possibilidade constitucional e — por maioria de razão — legal para poder adiar. Só em caso de morte ou de incapacidade permanente de um dos candidatos. Nem há tempo para revisão constitucional.”

Ao contrário do que acontece com outros atos eleitorais, a Constituição da República Portuguesa fixa uma data para a realização da eleição presidencial, que tem de acontecer nos “60 dias anteriores ao termo do mandato” do Chefe de Estado em funções. Ora, alterar a data da eleição implicaria necessariamente uma revisão da Constituição. Pormenor: é inconstitucional mexer na Lei Fundamental enquanto vigora o estado de emergência. Não há tempo, nem condições políticas e sanitárias para proceder à suspensão do estado de emergência, iniciar um processo de revisão constitucional e aprovar novas regras.

Consenso político seria a chave de uma solução criativa

José Moreira da Silva, antigo deputado social-democrata e ex-membro do Conselho Superior da Magistratura, entende que não há nada na Constituição que antecipe uma eventual suspensão das eleições nas circunstâncias em que vivem e que só um largo consenso político e alguma criatividade poderia permitir contornar o obstáculo. “Nada está previsto, pelo que é muito difícil a não ser que se tenha um enorme consenso nessa solução que tem de abranger os partidos e os órgãos do estado para se criar um regime de exceção”, diz ao Observador.

Entre os constitucionalistas ouvidos pelo Observador há quem avance uma solução possível. “Não é possível rever a Constituição da República em estado de emergência, de acordo. Mas se em estado de emergência é possível suspender normas da Constituição da República sobre direitos fundamentais, quem pode o mais pode o menos. A declaração de estado de emergência permite a derrotabilidade da norma da Constituição que fixa os prazos para a eleição presidencial”, argumenta Paulo Otero. “Mas isso implicaria o acordo entre Presidente da República, Governo e partidos com representação na Assembleia da República.”

Solução que Tiago Duarte, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, considera pouco realista. “Se o estado de emergência suspendesse o direito ao voto as pessoas não poderiam votar. Mas isso é inverosímil, uma ideia meramente académica”, defendeu o constitucionalista em declarações à RTP.

Vital Moreira, antigo eurodeputado socialista e considerado um dos pais da Constituição, descarta por completo o adiamento das eleições. “Não vejo razões para adiamento, nem vejo como seria possível fazê-lo. Por um lado, não há nenhuma situação, por exemplo um terramoto, que impeça fisicamente as eleições; por outro lado, é impossível fazer uma revisão constitucional em tempo útil para as adiar.  Por último, não havendo dúvidas sobre o previsível resultado eleitoral, também não há razão para temer qualquer impugnação política”, sintetiza.

Nem todos, no entanto, desvalorizam a dimensão dos desafios colocados pela pandemia. É verdade que não tem um impacto imediato de um sismo, nem provoca diretamente um número de baixas tão elevado. Mas a disseminação do surto pode fazer colapsar todo o sistema de saúde agravando ainda mais o número de mortos covid e não-covid.

“Seja a salvação do povo a lei suprema”

Daí que, anuladas estas duas hipóteses — revisão constitucional ou usar o decreto de estado de emergência para travar as eleições — há, mesmo assim, quem entenda que a Constituição da República é flexível o suficiente para permitir outras interpretações da lei.

Também em declarações à RTP, Pedro Bacelar Vasconcelos, deputado do PS e constitucionalista, lembrou que a Constituição também não prevê situações como terremotos, tsunamis ou invasões de exércitos inimigos — e ninguém espera que se realizem eleições nesses casos. “Há sempre uma margem de bom senso”, sugeriu o socialista, mesmo reconhecendo que esta discussão deveria ter sido colocada antes e que agora é manifestamente “tarde” para estudar alternativas.

Paulo Saragoça da Matta concorda com o argumento de base esgrimido por Bacelar Vasconcelos e acrescenta: não só não é tarde como é imperioso adiar as eleições. “Como é óbvio para mim ‘o Direito nunca tem tanta imaginação como a vida’”, começa por salvaguardar. “Logo não seria necessária qualquer previsão constitucional de uma pandemia ou de uma guerra ou tremor de terra para que o Direito possa dar uma justa e adequada solução ao problema. Interpretação é dar sentido correto, de dever ser e adequado às normas perante a tal imaginação da vida, que não cabe nos estritos termos de uma lei, ainda que seja a CRP”, argumenta.

De acordo com este penalista e constitucionalista, “não estão obviamente reunidas as condições para realizar as eleições, pelo que deveriam ser adiadas, mesmo sem haver uma previsão constitucional expressa para o caso”. “É o bom-senso”, reclama.

“Se o país estivesse destruído por uma guerra ou um tremor de terra deixaria de haver Governo ou Presidente da República enquanto não se pudesse fazer eleições? Entrava-se em anarquia e em vacância de governação? Claro que não”, aponta. ‘Salus populi suprema lex’ diziam os romanos [“Seja a salvação do povo a lei suprema”]. Parece que nos esquecemos disto.”