Às 23 em ponto, sintonizamos o “Corpo Dormente”, sítio de Bruno Nogueira no Instagram (com a vossa licença para o uso do anacronismo). Somos dos primeiros, mas, em dois segundos, passamos de 20 pessoas a assistir a 20 mil. E, rapidamente, às 50 mil. Às 23.04, estão 65 mil pessoas a olhar para um ecrã negro. Duas palavras: im pressionante.

Cerca das 23.05, quando estão 70 mil a assistir, surge finalmente Bruno Nogueira. Explica que regressa para esta emissão especial por duas razões: porque prometeu à filha mais nova que o faria (e fica claramente no ar a ideia de que haverá mais “bichos” destes, especiais) e porque sente que isto do campeonato do Covid está numa altura em que tanto pode ir para um lado como para o outro. Depois, passa a meia hora seguinte a justificar porque é que aceitou fazer os espectáculos do Campo Pequeno, com mais de 2000 pessoas, a presença do senhor Presidente da República, do senhor primeiro-ministro e da senhora ministra da Cultura, e que todas as normas de segurança foram cumpridas, e a criticar toda a gente que o criticou. Durante o monólogo, chegam a estar 102 mil – cento e duas mil – pessoas a assistir.

Às 23h33, liga para o primeiro amigo: Nuno Markl. Depois de mais críticas aos críticos, incluindo “um palerma dum barbeiro”, parece finalmente libertada a tensão e começa a falar-se da vida desde o fim do “Bicho” e do desconfinamento intermitente em que se vive desde então – o que inclui a vida íntima de Markl, ao que parece, ainda não plenamente retomada.

Quando falta um quarto para a meia-noite, Bruno liga para Jorge Palma. Naquele jeito enorme e simples, Palma conta que comprou dez aulas de piano com o Filipe Melo, mas que ainda não compareceu a nenhuma. E, depois, toca uma canção “adequada ao momento”: “A Gente Vai Continuar”. É o melhor momento do direto até agora e a audiência baixa de 98 para 84 mil.

Uma semana depois: o que é que o Bicho teve que não se explica? A vida real

Em todo o caso, mudou a energia do “programa” e seguimos para a melhor fase: Salvador Martinha fala de onde estariam na idade de Palma se tivessem levado a vida dele, Bruno liga para o pai (que parece o senhor do “Up – Altamente”, como Martinha assinala), vem Albano Jerónimo em estilo Kurt Cobain e reconhecendo que está na equipa do “eu acho que isto [da pandemia] vai dar merda”, por oposição à equipa do “isto vai correr bem”. Voltamos a Markl e à vida íntima dele. A caminho da hora e meia de directo, arrancam-se as primeiras gargalhadas, entre algumas frases memoráveis como “a vagina foi mais bem pensada que o pénis” e o delírio visual sobre o momento em que Markl volte a ter sexo (Albano comenta que será “uma espécie de Vhils do sémen”).

É meia-noite e 35 e Bruno liga para Beatriz Gosta, que está “na sanita” porque está na casa do “boy” e o “boy” está com pessoas. Junta Tinder e Convento de Mafra na mesma frase e no mesmo programa cultural e, só por isso, já valeu a pena. Seguimos para Nuno Lopes, que amanhã [hoje] voa para Marselha para regressar ao trabalho com múltiplas restrições, e de Nuno para João Manzarra que fala desta boa ideia: “Quando tocas com o cotovelo seis segundos e dás um bom olhar, equivale a um abraço”.

É uma da manhã, a hora a que o “Bicho” costumava acabar e ainda resistem 70 mil a assistir e falta muita gente com quem falar. Mariana Cabral sente que “o Instagram ‘tá todo meio em herdades”, “bué infinity pools”. Inês Aires Pereira conta-nos quantas vezes já foi hoje fazer cocó e pensamos como o “Bicho” é isto: a alternância de momentos verdadeiramente bonitos e autênticos com a privacidade que não interessa a ninguém. É uma e quinze e Ljubomir Stanisic vem malhar outra vez em Miguel Sousa Tavares e nos outros críticos dos espectáculos do Campo Pequeno; uma e 22 e João Quadros a mesma coisa, mas em modo surpreendentemente mais doce (depois de cortar uma melena de cabelo com uma gillette). À uma e 36 , vem o Vitinho de luxo, Filipe Melo, mandar-nos para a cama com mais uma pianada mágica que acaba em Bob Dylan (“It Ain’t Me, Babe”?).

Bruno Nogueira e a reinvenção do late night nos tempos da quarentena

À uma e 50, ainda com uns 30 mil por ali, Bruno Nogueira despede-se com o “vai correr tudo bem” das emissões “regulares”. Disse antes demasiadas vezes que teme que isto vá dar merda para soar convincente agora. Mas talvez seja disso que precisemos nesta altura: de dizer que vai dar merda, para ver se corre bem.

Alexandre Borges é escritor e argumentista