Como é que o novo coronavírus chegou aos arredores de Paris, à localidade de Bobigny, quatro dias antes de os serviços da Organização Mundial de Saúde, na China, terem sido alertados para a possibilidade de se estar perante um novo vírus, assim que apareceram os primeiros casos de uma pneumonia atípica em Wuhan?

Esta é a pergunta a que toda a comunidade científica anda a tentar responder desde que o médico Yves Cohen, responsável pela Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Grupo Hospitalar Avicenne-Jean Verdie, revelou, esta semana, ter descongelado 14 amostras de pacientes internados na UCI sem o diagnóstico de pneumonia, entre os dias 2 de dezembro e 16 de janeiro – e as testou à Covid-19. Um dos cotonetes revelou-se positivo. Para excluir qualquer hipótese de erro, a amostra foi submetida a dois tipos de testes. Ambos confirmaram vestígios de Covid-19.

Novo coronavírus circula em França desde dezembro, aponta estudo

Em entrevista à BBC, e perante estes dados, o médico admitiu que o vírus existe em França desde dezembro – quando o primeiro registo oficial da doença no país data de 24 de janeiro. Os primeiros pacientes seriam dois cidadãos que tinham passado por Wuhan, na China e teriam entrado no país nessa altura. Mas “com esta nova informação podemos ficar a conhecer melhor a doença e a estudar o seu ciclo de vida”, frisa o médico. Porque afinal tudo poderá ter acontecido pelo menos quase um mês antes.

Amirouche Hammar, o provável novo ‘paciente zero’ francês foi internado no dia 27 de dezembro e apresentava tosse seca, febre e dificuldade em respirar — sintomas que, mais tarde, se veio a perceber estarem relacionados com o novo coronavírus.

A pergunta, então, repete-se: como é que a infeção chegou a Bobigny mais cedo, tendo em conta que a última deslocação de Amirouche Hammar, até à data, para fora do país, tinha sido à Argélia, em agosto de 2019?

Yves Cohen avança com uma hipótese: o corner de sushi no supermercado onde a mulher de Hammar trabalhava. “Ela estava na peixaria, e o peixe que ali se vende é proveniente de França ou da Noruega, mas mesmo ali ao lado está a banca de sushi, onde só trabalham funcionários asiáticos. Estamos, agora, a tentar perceber se terão sido esses contactos próximos que a terão infetado e ela, por sua vez, infetou o marido e os dois filhos, sem nunca ter tido sintomas”, explicou o médico.

O supermercado está localizado junto ao aeroporto Charles de Gaulle e há também a hipótese da sua mulher ter entrado em contacto com turistas que tivessem chegado recentemente da China. Aos médicos, a mulher de Hammar confirmou que “muitas vezes os clientes paravam ali vindos diretamente do aeroporto, ainda com as malas de viagem”. A investigação está agora nas mãos das autoridades sanitárias francesas, que terão de relacionar os funcionários do corner de sushi com a cidade de Wuhan.

O médico revelou ainda à BBC que não é possível precisar a data certa da contaminação do ‘paciente zero’ porque os sintomas do novo coronavírus demoram entre 5 dias, até duas semanas, a aparecer. “O que sabemos, com toda a certeza, é que no dia 27 de Dezembro, data da amostra, o paciente estava positivo”, garante o médico. O que aponta a contaminação para os dias 14 e 22 de dezembro – um mês antes do registo oficial em França, e quinze dias antes da China ter comunicado o primeiro caso à Organização Mundial de Saúde (31 de dezembro).

Para o Intensivista a investigação também ainda não está fechada. Além ter agendada a publicação de um relatório completo no International Journal of Antimicrobial Agents, irá conduzir um estudo genético do vírus recolhido da amostra de Amirouche  Hammar, de forma a relacioná-lo com outras amostras chinesas.

O problema, reconhece Yves Cohen, é se o novo coronavírus de Hammar se revelar diferente da da estirpe isolada em Wuhan, onde o vírus foi inicialmente detetado. “Isso mudaria o rumo da investigação. Apontaria para a hipótese de outras fontes de infeção que não Wuhan”, explicou o Cohen. E o pior é que comprometeria a descoberta de uma vacina. “Estaríamos a falar de várias tipos de vírus. Poderíamos levar mais tempo a identificá-los a todos”, concluiu.

Perante estes novos dados, a OMS aconselhou, esta terça-feira, que os países que têm amostras de pacientes com suspeita de pneumonia, até ao final de 2019, devem analisá-las para identificar possíveis casos de Covid-19. Christian Lindmeier, porta-voz da OMS, afirmou que esses casos, anteriores à data em que a China relatou a doença, podem facultar informação importante no estudo do vírus. “Seria de grande importância que todos os países com casos não especificados de pneumonia em dezembro, ou mesmo em novembro, realizassem testes, e alguns já o fazem”.

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Para Lindmeier, não seria estranho o coronavírus estar fora da China em data tão precoce, “uma vez que os primeiros casos da doença datam do início de dezembro e é possível que alguns dos infetados tenham viajado de Wuhan para outros países”.

No entanto, segundo revelou o Le Parisien, milhares de atletas que participaram nos 7º Jogos Mundiais Militares (competição para atletas com carreira militar) e que decorreram em Wuhan entre os dias 18 e 27 de outubro de 2019, podem ter sido infetados – o que reforçaria a tese da Covid-19 já estar presente naquela cidade em outubro. A hipótese foi levantada por uma atleta e militar francesa numa entrevista ao canal Television Loire 7.

Elodie Clouvel, venceu a medalha de ouro no pentatlo moderno, e contou que “quase todos os membros da comitiva gaulesa ficaram doentes após o regresso da China”. O jornal francês adiantou também que vários membros da equipa sueca apresentaram febres altas quando regressaram de Wuhan. Segundo dados oficiais, 9.308 atletas de 109 países participaram na competição. E por isso, uma eventual presença do vírus já naquela altura pode ter acelerado a propagação da Covid-19.

A procura pelo ‘paciente zero’

A França não é o único país a abrir a porta à possibilidade da Covid-19 já circular mais cedo no país do que se pensava. Há duas semanas, um exame post mortem realizado na Califórnia revelou que a primeira morte relacionada com o novo coronavírus, nos EUA, pode, afinal, ter acontecido um mês antes do que se pensava.

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Se todas estas pistas estiverem corretas, isto significa que a disseminação da doença não foi controlada na Europa nem nos Estados Unidos, enquanto todos os olhos estavam postos em Wuhan. Segundo Rowland Kao, professor de epidemiologia na Universidade de Edimburgo, o caso de Hammar só veio mostrar a velocidade com que uma infeção que começa numa parte “aparentemente remota do mundo” se pode, rapidamente, espalhar por outros lugares. “Isso significa que o tempo de espera que temos para avaliar e tomar uma decisão é muito mais curto do que se pensava”, disse Kao ao The Guardian.

“Coronavírus em Milão já em dezembro”

Oficialmente, a OMS foi informada a 31 de dezembro de 2019 da ocorrência de um surto de pneumonia de causa desconhecida na cidade de Wuhan na China. As autoridades procuraram perceber a causa da doença e só a 7 de janeiro de 2020 identificaram o vírus que a causava – um novo coronavírus (SARS-CoV2). Mas não é a primeira vez que os especialistas alertam para a eventualidade da Covid-19 não ter tido início no mês de dezembro — ou sequer na cidade chinesa de Wuhan.

Um relatório da revista médica The Lancet, escrito por médicos de um hospital de Wuhan, data o primeiro paciente (com sintomas do que viria a ser a Covid-19) a 1 de dezembro. Um documento do governo chinês, a que o jornal South China Morning Post teve acesso, vai mais longe e indica que o primeiro caso de coronavírus ocorreu a 17 de novembro. Dos nove casos relatados pelas autoridades em novembro (quatro homens e cinco mulheres), nenhum foi confirmado como ‘paciente zero’, dificultando ainda mais a procura pela origem do vírus, e alimentando todo tipo de teorias da conspiração.

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O Corriere della Sera, na sua edição de 20 de abril, escrevia: “Coronavírus em Milão já em dezembro”. O jornal italiano contava a história de uma mulher, de 41 anos, que no dia 22 de dezembro apresentou um quadro grave de gripe, com febre acima dos 37 graus. Quatro dias depois, quando o termómetro já marcava 39º, dirigiu-se até ao hospital e foi tratada com antibióticos. Nos primeiros dias de janeiro, os sintomas pioraram: tosse seca, dores musculares e febre. O diagnóstico, feito pelos médicos, apontava para uma pneumonia. Internada no hospital, a paciente só viria a receber alta em fevereiro. Durante todo esse tempo, nenhum dos médicos pensou tratar-se do novo coronavírus . “Apenas um pneumologista me perguntou se eu tinha viajado para a China. E eu disse-lhe que sim”, contou a paciente ao jornal italiano.

As implicações de se ter detetado tardiamente a Covid-19, quando já era galopante na Europa, foram explicadas pelo médico italiano Pierluigi Lopalco numa entrevista ao jornal El Confidencial, tendo dado algumas pistas sobre o facto da região mais rica da Itália ter sido também a mais afetada.

“A Lombardia pagou o preço de uma epidemia que começou silenciosamente. Estávamos procurar o vírus em pessoas que tivessem vindo da China, ou que tivessem tido contacto com chineses, quando o vírus já estava no território”. Assim que os profissionais de saúde se perceberam disso, deixaram de procurar o ‘paciente zero’, e se concentraram nos casos suspeitos, “descobriram uma epidemia brutal”.  Naquele momento já só havia uma opção: o confinamento.

Em Espanha, a 23 de fevereiro, Fernando Simón, médico epidemiologista e diretor do Centro de Coordenação de Emergência do Ministério da Saúde, garantiu, durante uma conferência de imprensa, que ainda não havia casos no território espanhol. Os dados, agora, desmentem o médico e apontam para o facto de que, naquela época, a Covid-19 já circular na Península Ibérica. Só não se sabe por onde entrou nem como. Alguns dias depois — a 3 de março — viria a morrer a primeira pessoa diagnosticada com o novo coronavírus, infetada a 13 de fevereiro, em Valência. Isso coincide com as conclusões da equipa de infeciologistas do Instituto de Saúde Carlos III, em Madrid, que depois de analisar várias amostras do vírus, estimou a presença da Covid-19 em Espanha desde 14 de fevereiro.

A pandemia e a geopolítica

A questão sobre o ‘paciente zero’ pode até nem ser a mais relevante nesta fase de desconfinamento. Mas vai ser crucial quando chegar o momento de atribuir responsabilidades políticas — e geopolíticas — de uma pandemia que obrigou a confinar mais de metade da população mundial e devastou a economia global.

No Reino Unido também crescem as dúvidas sobre as informações que chegaram a Downing Street sobre o surto de pandemia. Um ex-agente dos serviços secretos britânico explicou ao jornal The Telegraph que o governo de Boris Johnson sabia “desde o primeiro momento” o que estava a acontecer na China. Isto porque vários agentes no terreno avisaram o primeiro-ministro que Pequim estava a encobrir o número real de mortos por Covid-19. “A ideia de que o Reino Unido levou a sério os números chineses é absolutamente ridícula. Se os chineses mentem, o papel dos serviços secretos é saber quais seriam os números reais “, diz a fonte ao jornal.

Já Peter Forster, investigador da Universidade de Cambridge, vai mais longe e coloca a hipótese do surto de SARS-CoV-2 ter começado em setembro. Esse é um “cenário plausível”, explicou ao jornal South China Morning Post.

“O vírus pode ter-se transformado, até se tornar eficiente para os seres humanos há mais tempo, mas ter-se mantido dentro de um morcego ou de outro animal, durante vários meses sem infetar qualquer outro indivíduo”, começou por dizer.

“Depois, começou a infetar e a propagar-se nos humanos entre os dias 13 de setembro e 7 de dezembro”, explicou durante a apresentação de um estudo publicado no jornal Proceedings of the National Academy of Sciences. Quanto ao local exato da pandemia, Peter Forster avisou que ainda não há qualquer conclusão definitiva, mas acredita que o mais provável é o surto original ter começado no “Sul da China e não em Wuhan”, cidade tida como epicentro da SARS-CoV-2. Só as amostras de tecidos preservadas em hospitais chineses, desde entre setembro e dezembro, podem servir de provas.